Arquivo virtual da Geração de Orpheu

Mário de Sá-Carneiro

O Arquivo Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), poeta modernista, inclui correspondência, cadernos e manuscritos, bem como a obra publicada no seu tempo de vida. Muitos destes documentos foram reunidos por François Castex, professor e escritor francês, e encontram-se conservados na Biblioteca Nacional de Portugal. Reúne-se aqui também o conjunto das cartas enviadas pelo autor ao seu amigo Fernando Pessoa.

Os documentos completos encontram-se no campo “PDF” e os manuscritos foram transcritos no campo “Edição”. 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/7_22
Esp.115/7_22
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Paris, no dia 17 de Abril de 1916. 

 

 **

Paris – Abril 1916

Dia 17

 

Meu Querido Amigo,

 

Recebi a sua carta e o seu postal. Não tenho nervos para lhe escrever, bem entendido. A minha doença moral é terrível – diversa e novamente complicada a cada instante. O dinheiro não é tudo. Hoje, por exemplo, tenho dinheiro. Mas você compreende que vivo uma das minhas personagens – eu próprio, minha personagem – com uma das minhas personagens. De forma que se pode ser belo, é trucidante. E o pior é que é muito belo: de maneira que nem o meu admirável egoísmo me pode desta vez salvar. Ainda tenho uma esperança – mas não me parece. Não sei onde isto há-de ir parar. Porque a minha situação – encarada de qualquer forma – é insustentável. Um horror. Perturbante, arrepiante o que me conta do seu estado de alma nos meus dias agudos. Mas natural. Se eu penso em você? Mas a todos os momentos, meu querido Amigo. Em quem hei-de eu pensar senão em você? E é nestes momentos que eu sinto todo o afecto que liga as nossas almas. Como eu quisera tê-lo aqui ao pé de mim para lhe explicar tudo, tudo. Sabe?

Por agosto deixei incompleta uma poesia que iniciara ainda em Lisboa, género «Inigualável». Começava assim:

Ah, que te esquecesses sempre das horas

Polindo as unhas –
A impaciente das morbidezas louras

Enquanto ao espelho te compunhas...

 

Escrevi muitos versos; mas a poesia ficou incompleta. Existiam nela estas quadras:

 

A da pulseira duvidosa
A dos anéis de jade e enganos –

A dissoluta, a perigosa
A desvirgada aos sete anos...

O teu passado – sigilo morto –

Tu própria quasi o olvidaras –

Em névoa absorto
Tão espessamente o enredaras.

A vagas horas, no entretanto,

Certo sorriso te assomaria

Que em vez de encanto,

Medo faria.

 

E em teu pescoço –
– Mel e alabastro –
Sombrio punhal deixara rastro

Num traço grosso.

 

A sonhadora arrependida
De que passados malefícios –

A mentirosa, a embebida

Em mil feitiços...

 

Pois bem: previram misteriosamente a personagem real da minha vida de hoje estes versos. E você compreende todo o perigo para mim – para a minha beleza doentia, para os meus nervos, para a minha alma, para os meus desejos – de ter encontrado alguém que realize esta minha sede de doença contorcida, de incerteza, de mistério, de artifício? «Uma das minhas personagens» – atinge bem todo o perigo? Diga o que pensa. E note: aqui não há amor, não há afecto: e o desejo é até a mínima prisão: Mas há todo o quebranto – quebranto para mim – que os meus versos maus longinquamente exprimem. Percebe bem o meu caso? Escreva-me – suplico-lhe – uma longa carta: e diga se mede bem o perigo, se me compreende. É um horror, um horror – porque é um grifado sortilégio. Porque é que eu se devia encontrar alguém: fui encontrar alguém – ainda que noutros vértices – igual a mim próprio? Não sei nada.

Tenha pena de mim: escreva-me imediatamente uma grande grande carta. Adeus.

Mil abraços de toda a alma

o seu, seu

Mário de Sá-Carneiro

Escreva hoje mesmo. Lembre-se da minha angústia. O meu caderno chegou?

 

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5849
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre folhas quadriculadas e sobrescrito.
Dados de produção
1916 Abr 17
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.