Carta enviada de Paris, no dia 31 de Março de 1916.
**
A menos dum milagre na próxima 2.a-feira 3 (ou mesmo na véspera) o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas «cartas de despedida»... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há uma outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há 15 dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às maravilhas: mas não tenho dinheiro. Contava firmemente com certa soma que pedira ao meu Pai há 15 dias. Ela não chegou – e como resposta um telegrama à legação em que o meu Pai pergunta quanto dinheiro preciso eu para ir para Lisboa... Houve decerto um mal-entendido, ou falta de recepção dum meu longo telegrama expedido em 19. Segunda-feira preciso inadiavelmente de 500 fran- cos. Como a menos dum milagre eles não podem chegar... aí tem o meu querido Amigo. É mesquinho: mas é assim. E lembrar-me que se não fosse a questão material eu podia ser tão feliz – tudo tão fácil... Que se lhe há-de fazer... Mais tarde ou mais cedo, pela eterna questão pecuniária, isto tinha que suceder. Não me lastimo portanto. E os astros tiveram razão... Hoje vou viver o meu último dia feliz. Estou muito contente. Mil anos me separam de amanhã. Só me espanta, em face de mim, a tranquilidade das coisas... que vejo mais nítidas, em melhor determinados relevos porque as devo deixar brevemente. Mas não façamos literatura. Pelo mesmo correio (ou amanhã) registadamente enviarei o meu caderno de versos que você guardará e de que você pode dispor para todos os fins como se fosse seu. Pode fazer publicar os versos em volume, em revistas etc. Deve juntar aquela quadra: «Quando eu morrer batam em latas» etc. Perdoe-me não lhe dizer mais nada: mas não só me falta o tempo e a cabeça como acho belo levar comigo alguma coisa que ninguém sabe ao certo, senão eu. Não me perdi por ninguém: perdi-me por mim, mas fiel aos meus versos:
Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo...
Atapetei-a sobretudo contra mim – mas que me importa se eram tão densos os tapetes, tão roxos, tão de luxo e festa...
Você e o meu Pai são as únicas duas pessoas a quem escrevo. Mas dê por mim um grande abraço ao Vitoriano e outro ao José Pacheco. Todo o meu afecto e a minha gratidão por você, meu querido Fernando Pessoa num longo, num interminável abraço de Alma.
o seu, seu
Mário de Sá-Carneiro
Veja lá: mesmo para os Astros diga-me potins, fale-me do sensacionismo...
Adeus.
Se não conseguir arranjar amanhã a estricnina em dose suficiente deito-me para debaixo do «metro»... Não se zangue comigo.