Recebi pois no dia 31 a sua linda carta de 26 conforme já o avisara por postal. O que lhe suplico é que não repita estes longos períodos de silêncio. Quando não puder escrever-me – diga-mo num postal. Peço-lhe isto encarecidamente. Muito obrigado pelas suas palavras sobre a minha carta desolada e os meus versos terríveis. Claro que continua e continuará tudo na mesma até que eu desapareça por algum alçapão de estoiro – mas o melhor é não pensarmos mais nisso! Ah! mas como sobretudo lhe agradeço o lembrar-se de mim enternecidamente ao encomendar chapéus complicados para os costureiros célebres de Paris. Minhas fitas de cor, meus laços, minhas plumas, minhas filigranas! Tanto enleio perdido, tanta carícia desfeita! A Zoina, a grande Zoina sempre! Mas que lhe hei-de eu fazer?... Vai junto um soneto. Nasceu como o «Fantasma». Aquilo ou fica tal e qual assim, estapafúrdio e torcido – ou se deita fora. Eu não sei nada. Por isso o meu querido Fernando Pessoa não se esqueça de me dizer do valor do estaferminho – e se o hei-de ou não aproveitar para os Indícios de Oiro, «Colete-de-Forças», claro. Quanto aos meus versos passados fez muito bem em os mostrar ao José Pacheco. Ao José Pacheco pode você mostrar tudo – porque é uma alma como o meu querido amigo muito bem diz. Quanto ao caso Rodrigues Pereira tem você perfeitamente razão: a sua atitude diante do sensacionismo é a duma mulher nova e linda, maquilada – estrangeira de Paris, americana ou polaca, muito culta, inteligente e toquée. Olhe: o que a americana da Confissão de Lúcio poderia assimilar da nossa Arte. Não lhe parece assim? Hein?... Mas o António Soares, esse sente os caminhos-de-ferro de lata? Isto são insignificâncias. Mas eu gosto muito de «potins». Fale-me pois, em mescla, de todos esses pequenos – e não se esqueça de me contar as coisas do Ramos etc. Acho muita graça a isso. Também leio no Matin os «Mistérios de New York». Dá-me muito prazer. Agora sobre a «Novela Romântica». A coisa mais importante que lhe tenho a dizer é esta – o aparecimento dum novo personagem: Com efeito em Paris, Heitor de Santa-Eulália, ao lado do conde húngaro Ludvico Bacskay seu companheiro de grande vida, cuja amizade data dum duelo – tem outro grande amigo, de alma, esse: o escritor polaco Estanislau Belcowsky moço artista emigrado, autor de novelas psicológicas inéditas, incompreendido e desgraçado. Estanislau Belcowsky sou eu. Falará das suas estranhezas, que serão as minhas, das suas ânsias que serão as minhas. Heitor de Santa-Eulália não o compreende inteiramente, porque um homem de 1830, mesmo Heitor, não me poderia compreender – mas pressente-o e admira-o. Dá-lhe dinheiro a rodos, para ele gastar pois compreende a necessidade que ele tem de viver em meios luxuosos – tem sobretudo a noção de que mais tarde, nos tempos futuros, na era das máquinas – haverá heróis de novelas assim, haverá uma arte de acordo com a psicologia, com a individualidade de Belcowsky. E Santa-Eulália embriaga-se de Oiro anteven- do a maravilha, e sente que ele é também um pouco, um precursor d’Aquela Raça. A influência de Belcowsky será uma certa sobre eles. Daí determinados pensamentos sensacionistas no seu ultra-romantismo. Atinge bem o meu fim? Parece-me estranha e interessante esta trouvaille. Que me diz você? Não se esqueça de me dar a sua opinião. Eis um exemplo das coisas que Belcowsky dirá a Santa-EuIália (linhas que de resto eu escrevi não sei se ao Franco se ao Rod. Pereira): «Agora os meus próprios sonhos fazem troça de mim. E os meus nervos – os estupori- nhos – não há quem os faça largar o trapézio. Há grandes osgas transversais sobre a minha vida. Não sei nem o que isto quer dizer – mas é assim tal e qual que eu o sinto. Cada vez posso menos deixar de ser quem sou – e dia a dia sofro mais por o ser. Se ao menos estas colunas, em face de mim, de súbito, se pusessem a andar...» Numa palavra, enquanto Heitor é um romântico pressentindo o interseccionismo (pressentindo-o através Belcowsky), Belcowsky é, puramente, um Inácio de Gouveia, um Ricardo de Loureiro... um Mário de Sá-Carneiro... Compreende bem o anacronismo «voulu»? Heitor ouvindo isto, terá grandes espantos mudos, grandes admirações maravilhosas, embora o pressinta unicamente, embora apenas suspeite, não sabe porquê bem, sê-lo um pouco, melhor: devê-lo ser mais tarde, numa outra incarnação, talvez, futura, sucessiva. Diga-me, não se esqueça por amor de Deus, o que pensa a este respeito. Outra coisa: mande-me um nome lindo e sombrio de mulher inglesa lady Helena qualquer coisa (mas Helena em inglês, que creio ser Ellen). Não se esqueça. Outro detalhe: esta Helena é a mulher por quem ele se apaixona em Paris: a que mata a sua paixão por Branca, a que faz com que ele se suicide para respeitar o seu amor por Branca. Muito bem: ele descortinará no entanto que a sua paixão por Helena é devida, não a ela própria, mas à protagonista do drama que há na sua vida. Sim: talvez não seja mesmo propriamente ela que ele ama: mas sim a sua história (de Helena), a sua lenda. No entanto isso mais lhe faz aumentar a paixão, melhor o conduz ao seu desfecho. Outros detalhes apareceram que não vale a pena mencionar-lhe. O que lhe rogo muito é que não deixe de, o mais breve possível, procurar a carta para eu ajustar tudo e começar a escrever a novela, pelo que estou ansioso. Rogo-lhe muito. E não se esqueça de me enviar o apelido de lady Helena.
Mil desculpas e agradecimentos por tudo
– Curiosíssimo o seu «estabelecimento» como astrólogo. Oxalá não haja impedimentos e isso vá por diante. Que extraordinária e pitoresca nota biográfica para a história dum Criador de Nova Arte, como você!
– Não se esqueça de responder à questão Carlos Ferreira. O negócio é certo. O governo belga já lhe enviou os recibos para ele assinar e receber os 1600 francos de subsídio.
– Zeplins europeiamente sobre Paris em 29 janeiro – bombas em Lisboa à mesma hora. Afinal, é também europeu.
Escreva-me muito – o mais depressa possível. Não se esqueça! Grande e saudosíssimo apertado abraço. Toda a Alma.