Arquivo virtual da Geração de Orpheu

Mário de Sá-Carneiro

O Arquivo Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), poeta modernista, inclui correspondência, cadernos e manuscritos, bem como a obra publicada no seu tempo de vida. Muitos destes documentos foram reunidos por François Castex, professor e escritor francês, e encontram-se conservados na Biblioteca Nacional de Portugal. Reúne-se aqui também o conjunto das cartas enviadas pelo autor ao seu amigo Fernando Pessoa.

Os documentos completos encontram-se no campo “PDF” e os manuscritos foram transcritos no campo “Edição”. 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/5_22
Esp.115/5_22
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Paris, no dia 6 de Agosto de 1914. 

 

 **

Paris 6 agosto 1914

Meu Querido Amigo,

Estou muito triste. Desoladora e comovidamente triste. É uma tristeza de silêncio, macerada a tons de platina – duma parte; e doutra: um arrepio de angústia, um não-querer apavorado. Se eu lhe disser que toda esta minha tristeza a motiva a guerra – talvez sorria você, e entretanto é ela que, na verdade, a provoca pelas complicações horríveis que pode trazer à minha vida. Nem o meu amigo as calcula – nem eu lhas posso explicar. E não é tudo: é uma saudade, uma saudade tão grande e piedosa do meu Paris de Europa, atónito, apavorado e deserto. Sim, sem literatura eu lamento as grandes lojas fechadas, os cafés apagados – todo o conforto perdido! Teatros, pequeninos quartos de hotéis, os salões dos grandes costureiros... Tanta pena, tanta pena... Eu sinto-me em verdade a amante pequenina dum rapaz loiro de vinte anos que partiu para a guerra e não voltou... Doutra forma não posso explicar porque a esta hora sinto uma tristeza de beijos que nunca dei... uma saudade de mãos que não enlaçaram, talvez, as minhas – e tudo isto suscitado pela devastação que me rodeia... Porque sentirei tão estranhamente?

Meu Amigo, como uma vez você avisava numa sua carta – perdoe-me a literatura, e não duvide da sinceridade da minha tristeza. Estou horrivelmente desgraçado de alma – num nervosismo constante, vibrante e aniquilador. Horas de inquietação ziguezagueada as que vivo – mas de inquietação de mim próprio. Entanto talvez de mim próprio: como um pedaço de Europa. – Queria-lhe dizer muita coisa interessante, mas não posso. É-me um suplício físico cada letra que a minha vontade arrepiada, debotada, escreve. Apenas isto, muito por alto: lembrei-me longinquamente de escrever um livro intitulado: Paris da Guerra aonde iria anotando as impressões diárias: mas interseccionadamente: falando dos fluidos a que me referi na minha última carta, da tristeza de que falo nesta etc. Compreende? Tenho de resto muitos episódios a tratar assim. Diga o que pensa.

– Agora isto meu amigo – recorde-se: eu disse-lhe em Lisboa, no Café da Arcada: tenho a impressão que me sucede qualquer coisa em Paris, que «há» qualquer coisa em Paris, este verão, por agosto ou setembro. Recorda-se? É fantástico, não é verdade? Mas bem longe estava de supor uma guerra!...

– Recebi o livro do Ferro e Cunha que está na verdade muito bem apresentado e me deixou uma bela impressão. Transmita isto aos rapazes, pois não tenho forças para lhes escrever. Leia esta carta ao José Pacheco que é também para ele, em pensamento. E que me desculpe o não lhe escrever neste instante. Não posso! Não posso! Atravesso uma crise sem fim de tristeza dilacerada (não dilacerante: dilacerada). Eu bem sei. Mais do que nunca me vem a sensação do Fim.

Meu Amigo, aperte-me nos seus braços! Meus Amigos apertem-me estreitamente nos vossos braços. Adeus.

o
Mário de Sá-Carneiro

Pelo mesmo correio seguiu uma carta registada com 30 000 réis dentro para o meu querido Fernando Pessoa imediatamente mos enviar por vale telegráfico pois aqui não trocam notas estrangeiras.

 
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5751
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre folhas pautadas e timbradas e sobrescrito.
Dados de produção
1914 Agosto 6
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.