Arquivo virtual da Geração de Orpheu

Mário de Sá-Carneiro

O Arquivo Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), poeta modernista, inclui correspondência, cadernos e manuscritos, bem como a obra publicada no seu tempo de vida. Muitos destes documentos foram reunidos por François Castex, professor e escritor francês, e encontram-se conservados na Biblioteca Nacional de Portugal. Reúne-se aqui também o conjunto das cartas enviadas pelo autor ao seu amigo Fernando Pessoa, guardadas no espólio E3 da Biblioteca Nacional.

Os documentos completos encontram-se no campo “PDF” e os manuscritos foram transcritos no campo “Edição”. 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/5_20
Esp.115/5_20
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Paris, no dia 1 de Agosto de 1914. 

 

 **

Paris – Agosto de 1914

Dia 1.o

 

Escrevo-lhe numa hora horrível – meu querido Amigo. Para o mundo – para a Europa – e mesmo, pessoalmente, para mim: para nós todos... O que se irá passar? Ninguém o sabe. Mas neste momento a guerra parece inevitável. Toda a Europa em armas – lê-se nas manchettes.

 
 

E mesmo de Lisboa, telegramas: Portugal mobilizará 10 mil homens em vista da aliança inglesa. Por mim estou ansioso e desoladíssimo neste momento. O meu Pai já ontem me telegrafou de L. Marques a dizer-me que era melhor voltar para Lisboa. Respondi-lhe que valia ainda esperar. A cada passo entretanto receio ter que partir por ordem dele – ou mesmo forçado pelas circunstâncias. Seja como for só partirei em últi- mo caso. Estou muito triste! De resto, embora os perigos, eu gostaria veementemente de viver esta guerra da Europa em Paris. Mas não sei, nada, nada...

– Recebi hoje a sua carta se 28 que muito agradeço e achei interessantíssima. Parece impossível que você receie maçar-me com o que nela diz!... Sobretudo entusiasmou-me a sua teoria da «República Aristocrática» – que creio ter perfeitamente compreendido. E entusiasmou-me muito alto – por o «paulismo» lhe ser um forte apoio. Cada vez me vanglorio mais de pertencer a essa escola – e mais creio nela: mais creio em você – mais creio em mim. Que belíssima coisa seria agora com essa orientação «total» a nossa revista – Europa! – Curiosíssima a atmosfera de Paris entre estes acontecimentos. Toda a gente passa na rua, sombria, preocupada: e a mesma compreensão do perigo todos sobressalta. Há, sinto em verdade – não apenas por literatura – qualquer coisa a mais no ambiente tremulante (devido em «ra- cional» por certo, aos meus nervos de inquietação), o movimento dos veículos parece outro, mais contínuo – mais soturno... Enfim, qualquer fluido ondeia na atmosfera além do ar – tenho, em sinceridade, essa impressão. E lembro-me – agora por literatura – que em verdade a força psíquica de toda a gente pensando na mesma coisa – de tanto cérebro com a mesma preocupação profunda, de igual sentido, de iguais inflexões – poderia, deveria presumivelmente criar na atmosfera envolvente qualquer coisa de subtil... Isto seria uma crónica interessante a desenvolver... uma crónica, sabido, laivada de interseccionismo.

Recebi também carta do Guisado com as duas poesias a que você se refere. Magníficas. Mas concordo muito com o que o meu Amigo diz na sua carta sobre as deficiências, ainda, do Guisado. Também ontem me chegaram versos do C. Rodrigues: «Odes proféticas» que são belas, – entanto muito menos as senti do que a maioria dos seus versos.

– Desculpe não prolongar esta carta mais. Mas o meu terrível estado de espírito não mo permite, nesta onda de calor que, de mais a mais, hoje caiu sobre Paris. E oxalá não seja esta a última vez que eu lhe escreva daqui.

Mil abraços – mil agradecimentos pela sua carta, também.

o seu

Mário de Sá-Carneiro

Saudades do Franco.

 
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5749
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre folhas timbradas ("Café de France") e sobrescrito.
Dados de produção
1914 Agosto 1
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.