Arquivo virtual da Geração de Orpheu

Mário de Sá-Carneiro

O Arquivo Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), poeta modernista, inclui correspondência, cadernos e manuscritos, bem como a obra publicada no seu tempo de vida. Muitos destes documentos foram reunidos por François Castex, professor e escritor francês, e encontram-se conservados na Biblioteca Nacional de Portugal. Reúne-se aqui também o conjunto das cartas enviadas pelo autor ao seu amigo Fernando Pessoa, guardadas no espólio E3 da Biblioteca Nacional.

Os documentos completos encontram-se no campo “PDF” e os manuscritos foram transcritos no campo “Edição”. 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/5_17
Esp.115/5_17
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Paris, no dia 20 de Julho de 1914. 

 

 **

Paris – julho de 1914

Dia 20

 

Meu Querido Amigo,

 

Recebi hoje a sua carta que muito agradeço. Era desnecessário repetir-me a sua sinceridade dentro dela, por causa da literatura com que a ungiu. Eu nunca duvido dela em você – e foi-me mesmo deveras grato esse paulismo intermediário... Você deve talvez ter razão no que me diz sobre o meu estado de alma. Explicando melhor: eu hoje já não tenho estados de alma: isto é: sei apenas lembrar-me dos estados de alma que deveria ter em certos momentos e do respectivo género de sofrimento que esse estado de alma me devia provocar. Daí o eu ter-lhe falado do meu «embalsamamento» que, creia, é a melhor palavra para escrever o meu Eu actual. Quanto à minha vida artística, nada sei. Entretanto esta mesma artificialização, este mesmo embalsamamento a salva, porque a fixa. Assim apenas o que poderia era não aparecer nada de novo – apenas ideias novas. É bom pôr de parte talvez os pessimismos. Há apenas como factores con- trários, o meu egoísmo, a minha infantilidade que me fazem só trabalhar a prémio... Daí o perigo que um dia o «prémio» já não me pareça suficiente... Mas o certo é que terminei justamente agora, e dum jacto quase, a «Grande Sombra» – a qual principiarei a apurar amanhã. Logo...

Meu Amigo, até hoje sonetos seus apenas recebi dois a que já me referi, tenho a certeza, numa carta dizendo-lhe em resposta à sua classificação (de lepidópteros) que eram maravilhosos – e só não admiráveis por serem do Fernando Pessoa. Esses sonetos de resto chegaram já há muito tempo e não com a carta que trouxe o fim da ode do Campos. Nem nessa carta, que reli, você fala de sonetos. Veja pois que noção de erro: acrescentada nisto: há uns 8 dias o meu avô escreveu-me um postal em que me dizia que sobre o soneto nada podia dizer pois ele não tinha lá aparecido... Tratar-se-á dos sonetos que você não me enviou?... (em pleno erro!...)

Você tem razão, que novidade literária sensacional o aparecimento em 1970 da Correspondência inédita de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro – publicada e anotada por... (perturbador mistério!)

 

Que tal é a Labareda como aspecto? E como apresentação (queria dizer: colaboração). Você é claro que faz muito bem em mandar para lá ultrapaulismo, mas bem ultra!

Hoje, francamente, o assunto escasseia. Fico ansioso por conhecer as novas produções do simpático Ricardo Reis.

Extremamente curioso o que me diz sobre o seu desdobramento em vários personagens – e o sentir-se mais eles, às vezes, do que você próprio. Efectivamente descreve bem talvez esse estado o: «Ter-me-ia volvido nação?» E é verdade, de toda a alma lhe agradeço as suas palavras sobre mim. Elas são o meu maior orgulho.

Não me lembro de mais nada para lhe dizer se não que, se vir o José Pacheco lhe dê muitas saudades minhas e lhe diga que eu levarei muito a mal se ele continua no silêncio de até hoje – a ponto que nem eu ou o Franco sabemos se ele aí chegou...

E para você, com todos os agradecimentos repetidos mil abraços interseccionados em Ouro e Alma

O seu
Mário de Sá-Carneiro

O Franco agradece as suas saudades e retribui.

 
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5746
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre folhas lisas, timbradas ("Café Riche") e sobrescrito.
Dados de produção
1914 Julho 20
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.