Arquivo virtual da Geração de Orpheu

Mário de Sá-Carneiro

O Arquivo Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), poeta modernista, inclui correspondência, cadernos e manuscritos, bem como a obra publicada no seu tempo de vida. Muitos destes documentos foram reunidos por François Castex, professor e escritor francês, e encontram-se conservados na Biblioteca Nacional de Portugal. Reúne-se aqui também o conjunto das cartas enviadas pelo autor ao seu amigo Fernando Pessoa.

Os documentos completos encontram-se no campo “PDF” e os manuscritos foram transcritos no campo “Edição”. 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/5_11
Esp.115/5_11
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Paris, no dia 27 de Junho de 1914. 

 

 **

Paris, 27 junho 1914

Meu Querido Amigo,

 

Recebi a sua grande carta que muito do coração agradeço – mas em áurea sinceridade. Antes de lhe responder, dizer de mim, e patentear a minha admiração pelas odes do nosso Ricardo Reis, tenho meu amigo, com muito pesar que o atropelar com um

«Grande e Importante Pedido»

 
 

Meu Amigo tendo muito pouco dinheiro até o meu Pai mo enviar d’África o que só sucede por meios de Julho (vindo eu assim a receber apenas em Agosto) escrevi hoje ao Bordalo e à Livraria Ferreira. Àquele para que entregasse a você todas as Confissões de Lúcio e Dispersões que tiver no estabelecimento – à Livraria Ferreira para que lhe entregassem todos os Princípios. Estes volumes todos o meu Amigo terá a bondade de os fazer transportar a pau e corda para a Livraria Universal (de Armando Joaquim Tavares) 30, Calçada do Combro. O preço por que lá compram a Confissão de Lúcio e Dispersão é respectivamente de 50 réis e 20 réis. Pelo Princípio mandei pedir em carta que segue pelo mesmo correio 70 réis por exemplar – mas se ele não quiser dar mais de 60 (ou mesmo 50) não faz mal. Entanto estou certo que dará os 70 réis. O meu amigo guarde em sua casa aí uns 10 (dez) exemplares do Princípio. Peço-lhe para ir tratar deste assunto no dia seguinte à recepção da minha carta – sobretudo à Livraria Ferreira, que é o mais importante pois têm lá cerca de 250 a 300 exemplares, o que a 70 réis cada sobe a 20 000 réis. Agora oiça, para seu entendimento: Eu escrevi à Livraria Ferreira pedindo para me enviarem a minha conta em débito a fim de eu a satisfazer, e para fazerem a 1.ª liquidação dos meus livros lá em consignação: A Confissão de Lúcio e Dispersão (cujas sobras devem lá permanecer) e ao mesmo tempo prevenindo que o meu Amigo Sr. F. Pessoa iria lá requisitar os exemplares existentes em depósito do Princípio. Peço muito a você para levar a bem toda esta trapalhada – assegurando-lhe que só tomo a decisão de lhe dar tantos incómodos porque muito preciso de dinheiro. Vão juntos dois cartões meus para com eles você se apresentar na Livraria Ferreira e no Bordalo. O dono da Livraria Universal também está prevenido. O dinheiro, deduzindo as despesas dos fretes e outras (e mesmo alguma pequena quantia que você de momento necessitar e que eu muito gosto terei em lhe emprestar) deve você enviar-mo em carta registada e em notas francesas, inglesas ou portuguesas. Evite o mais possível o vale – emitindo-o apenas se a importância não fosse aproximadamente reduzível a notas (podem mesmo vir notas francesas e portuguesas: por exemplo se tudo desse 15 ou 25 mil- réis).

Enfim deixo tudo ao seu cuidado.

Quando me enviar o dinheiro rogo-lhe que ao mesmo tempo me avise telegraficamente: «Agora 75» (o número de francos que enviar).

O endereço, ponha este: Carneiro 50 rue des Écoles Paris.

Para liquidar o assunto repito-lhe todas as minhas desculpas e creia que lhe ficarei muito grato pelo grande serviço que me vai prestar.

Perdoe, sim? Você é um santo. (E ponha-me a par de todas as suas démarches).

Literatura – Admiráveis meu querido Poeta as odes do Ricardo Reis. Conseguiu realizar uma «novidade» clássica, horaciana. Pois tal é a impressão que elas me deixaram. Não sei porquê, contêm elementos novos – entanto são clássicas, pagãs. E deixe-me dizer-lhe: uma maravilha de impessoalidade, pois se no Caeiro ainda ressumava de vez em quando Mestre Fernando Pessoa, o mesmo não sucede nos versos do Reis. Eles, sendo Seus na beleza, no génio – são bem dele no conjunto. A primeira estrofe, logo, da 1.ª ode é qualquer coisa de muito grande, de muito novo – na sua simplicidade e no seu classicismo. Horácio multiplicado por alma não poderíamos chamar ao Ricardinho Reis? Percorrendo as outras odes, a cada passo surgem coisas admiráveis, de todas as odes além da 1.ª destaco a segunda:

«... deuses que o destroná-los

tornou espirituais»


a 8.ª, a 6.ª, a 11.ª e essa tão pequenina, tão graciosa 3.ª... enfim todas!...

A ouro, todas as minhas felicitações. (Não estou de acordo em que a primeira ode tenha muito a alterar. Acho-a belíssima como está e justamente uma das mais modernas e clássicas, das mais Horácio-multiplicado-por-alma. Mas nisso, o último e melhor juiz é claro você.)

Muito interessante o enredo Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos (devo dizer-lhe que simpatizo singularmente com este cavalheiro). Acho-o perfeitamente maquinado, soberbo – mas entretanto será bom não nos esquecermos que toda essa gente é um só: tão grande, tão grande... que, a bem dizer, talvez não precisasse de pseudónimos... Mas em suma tudo quanto há de mais lúcido, mais interessante, mais natural. Que bela página de história literária!...

Por mim, literariamente inactivo estes últimos dias.

O n.º do Parthénon não mo guardaram no restaurante!... Também a poesia de Nicolas era tão lepidóptero que não faz mal...

Que eu saiba não sou redactor-principal da Flama. Colaborarei literariamente entretanto e paulicamente – tanto mais que o D. Tomás, segundo aí me disse, na parte artística quer introduzir o maior avanço, mesmo para explorar o snobismo.

(É verdade: embora ache justo, confesso-lhe que tenho pena que o Caeiro não entre para o paulismo.)

Desculpe a desordem e o pouco interesse desta carta – tanto mais imperdoável quanto começo por lhe ferrar uma medonha estopada pela qual renovo todos os meus perdões e agradecimentos.

Perdoe-me – mas está um calor enorme e eu com uma camisola grossa de lã!...

Perdoe-me. Adeus. Adeus!

Um grande abraço d’Alma!

o seu
Mário de Sá-Carneiro

Ansioso pelas obras do A. de Campos.

Esta carta não vai atrasada quanto à sua – pois apenas a recebi ontem devido à greve dos subgentes (digo: subagentes) cá da terra. Também recebi um postal pela não inclusão do eco, que em verdade gostaria de ver.

Saudades, muitas, do Franco e Pacheco.

Não tornei a ver o Santa-Rita.
Sá-C.

Tenha paciência na estopada que lhe prego!... Perdão!...
Mil agradecimentos!
Escreva muito breve!

Vai uma nota dos livros Bordalo. Mais tarde o meu amigo terá também a bondade de ir lá liquidar a venda na província e Brasil. Fale nisso ao homem.

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5700
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre folha pautada, timbrada ("Café de France").
Dados de produção
1914 Jun 27
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Futurismo, Modernismo, Paúlismo
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.