Arquivo virtual da Geração de Orpheu

Mário de Sá-Carneiro

O Arquivo Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), poeta modernista, inclui correspondência, cadernos e manuscritos, bem como a obra publicada no seu tempo de vida. Muitos destes documentos foram reunidos por François Castex, professor e escritor francês, e encontram-se conservados na Biblioteca Nacional de Portugal. Reúne-se aqui também o conjunto das cartas enviadas pelo autor ao seu amigo Fernando Pessoa.

Os documentos completos encontram-se no campo “PDF” e os manuscritos foram transcritos no campo “Edição”. 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/6_71
Esp.115/6_71
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Paris, no dia 29 de dezembro de 1915. 

 

 **

 

Paris – Dezembro 1915

Dia 29 (à noite)

Meu Querido Amigo,

 

Estou-me volvendo, decididamente, num boneco muito pouco interessante. Recebi ontem a sua carta entusiástica sobre o Sr. Mendes do Almada Negreiros. Abrace o rapazinho por mim. Hoje mando beijos para ele num postal que você provavelmente receberá antes desta carta por via da censura. Vai junto um retrato duma petite-femme do Café Riche que é outra incarnação do Almada como você logo verá. Autoria do retrato: sr. Ferreira da Costa. Dê o boneco ao pequeno bem como o postal que envio ao seu cuidado pois na Brasileira o podem surripiar. Não sei como isto há-de ser decididamente. Eu bem quero, mas não há maneira. A tômbola gira cada vez mais desordenada. Sobretudo não posso estar um momento quieto.

É uma febre, uma febre. Quando vou a casa do F. da Costa escangalho sempre as franjas do tapete – e outro dia parti-lhe um cinzeiro. Hoje saí de casa. Estive já na terrasse do Americano. Não sosseguei. Agora, não sei porquê, estou na Taverne Pousset que é um café com que eu embirro imenso. Depois tenho o jantar. Depois outro café. Mas que raio hei-de fazer? E antes de ontem pedi 500 francos para Lisboa. Provavelmente não mos mandam. Também não preciso deles para nada. Mas é um horror, um horror. Uma vertigem de aborrecimento – um comboio expresso de anquilose.

Aborrecimento na alma, por todo o corpo: e o que é pior: nos intestinos. Borbulhas na testa e no pescoço. Tudo isto, juro-lhe, provocado pelo meu estado de alma impossível, e cada vez mais sem remédio. Uma vontade imensa de me embebedar, mas nos ossos. Depois – sem literatura – de súbito, focam-se-me nitidamente coisas estrambóticas, que devem ser recordações: ontem à noite, uma galinha de vidro azul a assar no espeto – sim de vidro azul: e peças de bordados redondos, ocultando qualquer coisa por baixo que mexia e devia ser detestável. Os bordados eram brancos e cor-de-rosa – e mexiam os estuporinhos, mexiam! Onde irá isto parar – é que eu não sei. Depois o que havia em mim de interessante é hoje papel rasgado. Estou farto! farto! farto! Merecia que me pusessem um barretinho de dormir todas as noites – palavra, meu querido Amigo. E o pior é que tenho perfeitamente a noção de tudo quanto lhe escrevo – que estou em mim perfeitamente e tanto que lhe vou dizer que o Jean Finot (director da Revue) disse ao F. da Costa que lhe fez o retrato e entrevistou que tinha o maior prazer de inserir na sua revista artigos sobre a literatura portuguesa moderna. Isto deve mesmo sair no Século. Era ocasião magnífica para você escrever um artigo sobre a «jovem literatura» aí de baixo. Mas não diga mal de ninguém. Lepidóptero claro, o Jean Finot – que lê português – acha admirável o Jean de Barros já vê. Mas podia só falar de nós e dos renascentes. Era interessante. Você provavelmente é que não está para isso. Em todo o caso era muito interessante. Garanto-lhe que o artigo seria publicado. Você enviar-mo-ia a mim que eu o faria chegar ao Finot. Artigo claro «sage». Ou então enviá-lo directamente se por acaso você preferisse isto: assiná-lo com um nome qualquer: Ismael de Campos – para poder falar do Fernando Pessoa.

Pense em tudo isto.

– Orfeu mundial: O C. Ferreira contou-me que falando ontem a um comerciante Eduardo de Azevedo em casa dele, por acaso, no meu nome – ele logo: Ah! já sei, um dos malucos do Orfeu: e duma gaveta ei-lo que tira brandido na mão o nosso terrível 2 prateado! Lera a Capital, em Nantes – onde habita normalmente – e a um amigo de Lisboa logo pedira a revisteca. Soberbo! Soberbo!!!

Olhe você perdoe toda esta carta que afinal é um desabafo. Você compreende que se eu batesse aqui um murro na mesa era um escândalo. Pois bem as asneiras psicológicas que atrás refiro – são esse murro. Perdoe. Escreva. Dê o retrato e o postal ao Almada.

Mil abraços, mil saudades

do seu, seu

Mário de Sá-Carneiro

que em todo o caso ainda não pensa em procurar contrato como artista mímico...

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5698
Classificação
Espólio Documental
Correspondência, Poesia
Dados Físicos
Tinta preta sobre papel liso e sobrescrito.
Dados de produção
1915 Dezembro 29
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Orpheu, Futurismo, Modernismo
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.