Arquivo virtual da Geração de Orpheu

Mário de Sá-Carneiro

O Arquivo Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), poeta modernista, inclui correspondência, cadernos e manuscritos, bem como a obra publicada no seu tempo de vida. Muitos destes documentos foram reunidos por François Castex, professor e escritor francês, e encontram-se conservados na Biblioteca Nacional de Portugal. Reúne-se aqui também o conjunto das cartas enviadas pelo autor ao seu amigo Fernando Pessoa.

Os documentos completos encontram-se no campo “PDF” e os manuscritos foram transcritos no campo “Edição”. 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/6_61
Esp.115/6_61
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Paris, no dia 18 de novembro de 1915. 

 

 **

Paris – Novembro 191

Dia 18

Meu Querido Amigo,

 

Oiça: não me largue os livreiros. Eu hoje mando-lhes dois postais. Explique bem ao Augusto – para ele, por seu turno – contar ao Monteiro, que eu preciso receber o mais dinheiro possível – todo é que era o verdadeiro – em 1 de Dezembro o mais tardar, como já lhes disse por carta. Entanto era da máxima conveniência que ele chegasse dois ou três dias antes. Explique bem isto – e diga o que se passar. Por mim nada: Vai um mundo de crepúsculo pela minha alma cansada de fazer pinos. Há capachos de esparto, muito enlameados pelo meu mundo interior. O pior é que nem ao menos sei como os hei-de secar! Sinto «material» literário com fartura no meu estado psíquico actual para novas obras. Mas falta-me toda a coragem, todo o incentivo – «o prémio» – para escrever, trabalhar. E eu não faço nada sem prémio.

Depois estou terrivelmente constipado! Escreva-me muito por amor de Deus. É uma obra de caridade. Se ao menos o Franco aparecesse... Preciso tanto de alguém!

E o C. Ferreira é um óptimo rapaz – tenho agora visto – mas não é mais nada. O sr. F. da Costa – carbonário pleno. Nem mesmo isso: a áurea mediocridade em todo o seu esplendor. Raios partam tal malandro! Amanhã vou passar o dia com ele...

– A propósito – isto é, como sempre, a despropósito – fale-me do Guisado. É criatura ainda tratável? Fez versos em Mondariz? Eu poder-lhe-ei escrever? Informe-me a este respeito. Eu, por mim, gostava muito de lhe escrever, mas não sei o que ele tem contra mim, nem as intenções em que está! Informe-me você com toda a franqueza. Sabe bem que o Guisado será sempre para mim o admirável Poeta e o excelente rapaz toldado de Burguesia. Não hesite pois em responder-me a esta simples pergunta: – Posso à vontade escrever ao Guisado – ou é melhor não o fazer? Compreende que não estou disposto a receber dele uma carta diplomática...

Adeus, meu querido amigo.

Não me largue os livreiros – e escreva sempre o mais possível!

Um grande abraço de toda a minha alma

o seu seu

Mário de Sá-Carneiro

 

Vou talvez escrever uma poesia que começa assim:

– Ah, que me metam entre cobertores,
E não façam mais nada...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada –

Que não se abra mesmo para ti, se tu lá fores...

Lã vermelha, leito fofo, ar viciado –
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira:
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado

Bolos d’ovos e uma garrafa de Madeira...

   ..................................................................
   ..................................................................

[É verdade, lá vai um poema duma quadra]

 

O Pajem

Sozinho de brancura eu vago – Asa
De rendas que entre cardos só flutua...

Triste de mim que vim de Alma prà rua,

E nunca a poderei deixar em casa...

 

Paris – Nov. 1915

M. de Sá-C.

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5688
Classificação
Espólio Documental
Correspondência, Poesia
Dados Físicos
Tinta preta sobre papel liso e sobrescrito.
Dados de produção
1915 Novembro 18
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Orpheu, Futurismo, Modernismo
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.