Arquivo virtual da Geração de Orpheu

Mário de Sá-Carneiro

O Arquivo Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), poeta modernista, inclui correspondência, cadernos e manuscritos, bem como a obra publicada no seu tempo de vida. Muitos destes documentos foram reunidos por François Castex, professor e escritor francês, e encontram-se conservados na Biblioteca Nacional de Portugal. Reúne-se aqui também o conjunto das cartas enviadas pelo autor ao seu amigo Fernando Pessoa.

Os documentos completos encontram-se no campo “PDF” e os manuscritos foram transcritos no campo “Edição”. 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/6_39
Esp.115/6_39
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Paris, no dia 30 de Agosto de 1915. 

 

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Paris – Agosto 1915

Dia 30

 

Meu Querido Amigo,

 

Recebi hoje o seu postal de 27 que de todo o coração agradeço. Com a mesma ânsia de sempre espero a sua carta projectada para Domingo último (ontem). Oxalá esse projecto não se difundisse... Fico interessadíssimo com o novo filme Álvaro de Campos, engenheiro. E inquieto: não sei se se trata com efeito de mero filme literário (obras) ou de filme de acção. E as acções do Engenheiro Sensacionista por belas e intensas – fazem-me tremer pelo meu caro Fernando Pessoa... Não se esqueça de me contar tudo por miúdos – e na minha insistência quotidiana não deixo de lhe grafar, sublinhadamente mais uma vez a eterna frase: Não deixe de me escrever, por amor de Deus!

De mim: Tão pouco e tanto. Sabe você: eu creio que na verdade há um ano estou um pouco cientificamente doido. Com efeito há no meu espírito coisas que não havia dantes. Esta expressão é de resto um puro idiotismo pois se escrevo o que acima fica é precisamente por não haver no meu espírito coisas que havia dantes. Mas coisas impalpáveis. Isto é muito difícil, senão impossível de explicar. Eu actualmente ando sempre com a alma de estômago vazio mas sem apetite. É assim que, muito longinquamente, posso exprimir talvez o «fenómeno». Estou longe de mim? Não sei. Parece-me melhor que fui tomar banho – e estou há um ano esquecido na tina – por milagre a água não tendo esfriado... De resto, meu querido Fernando Pessoa, eu não tenho culpa nenhuma disto. E por o saber escrever: ora, é claro que estou no meu perfeito juízo. Depois as circunstâncias na minha vida é que têm sido muito mais doidas do que eu. Alguém pode governar o acaso? Suponha você um homem de perfeito juízo, perfeitamente normal quanto a si próprio – mas que na sua vida não encontrasse senão circunstâncias inesperadas, fenomenais, irrisórias, estrambóticas, inexplicáveis – que o envolvessem continuamente? A realidade da vida deste homem seria pois uma realidade destrambelhada, louca. E como essa realidade era a vida desse homem – esse homem, sem culpa nenhuma, de perfeito juízo: não o poderíamos em verdade chamar um doido? Creia que o meu caso é um pouco o deste hipotético figurão. E aqui tem você uma talvez futura novela minha: «Para lá»? Análise psicológica muito pessoal e, sobretudo, da minha crise presente. Receio de endoidecer em verdade. Demonstração que não há esse perigo. Mas olhar em volta – e ver as «circunstâncias», as terríveis circunstâncias positivamente de Rilhafoles... A história seria em diário. Por fim o abandono da luta. Não mais fazer constatações. Deixar entregar-se às circunstâncias. Elas que decidam do seu juízo ou da sua loucura. A última frase será esta, com uma data bastante afastada da penúltima, que indicará esse abando- no de luta: «Por enquanto ainda não houve novidade...»

Eu não sei se você percebeu alguma coisa disto. Estou hoje muito lepidóptero para escrever cartas, você perdoe – e faça por perceber... Outro projecto: uma novela género Prof. Antena (mas muito menos importante). Título: «Pequeno elemento no caso Fabrício». O Fabrício é um homenzinho que de repente se encontra outro, perfeitamente outro. É dado como doido, claro. O fim da novela, a processos Antena, é sugerir uma explicação real para este sarilho. Noutra carta lhe explicarei o assunto. Note que não é nenhum caso de desdobramento à «Eu-Próprio o Outro». Trata-se dum homenzinho que de súbito aparece outro – em alma, claro: ele próprio concorda diante dum espelho que aquele que ele diz ser é louro e gordo: enquanto o espelho lhe reflecte um magro e trigueiro. De resto, meu caro Amigo, esta ideia como as outras pouco me seduz. Estou mesmo num período muito passivo para começar qualquer obra. Mas não é mau que surjam ideias, mesmo fracas, para treino imaginativo. Diga em todo o caso o que pensa de tudo isto. Não se esqueça. Escreva!

Adeus. E um grande, grande abraço do seu
Mário de Sá-Carneiro

P. S. – A novela «Para lá» conterá muitas coisas pelo meio: por exemplo: Fernando Passos [sic] será lá bastante falado – e Paris, a minha quinta etc., etc.

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5666
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre folhas lisas e sobrescrito.
Dados de produção
1915 Agosto 30
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.