Arquivo virtual da Geração de Orpheu

Mário de Sá-Carneiro

O Arquivo Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), poeta modernista, inclui correspondência, cadernos e manuscritos, bem como a obra publicada no seu tempo de vida. Muitos destes documentos foram reunidos por François Castex, professor e escritor francês, e encontram-se conservados na Biblioteca Nacional de Portugal. Reúne-se aqui também o conjunto das cartas enviadas pelo autor ao seu amigo Fernando Pessoa.

Os documentos completos encontram-se no campo “PDF” e os manuscritos foram transcritos no campo “Edição”. 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/6_38
Esp.115/6_38
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Paris, no dia 24 de Agosto de 1915. 

 

 **

Paris – Agosto 1915
 
Dia 24

 

Meu Querido Amigo,

 
Esta manhã recebi a sua admirável carta de 13-20 do corrente. Zango-me primeiro que tudo com você, muito, por supor que me pode maçar com a exposição da crise que agita o seu espírito, presentemente.
 

Mas além da honra que a posse dessas páginas me emociona – como é belo e grande e luminoso e perturbador – artisticamente, mesmo: o novelista em mim o garante – tudo quanto o meu querido Fernando Pessoa de si me conta. Sobre a minha impressão – e digo-lhe tudo nela? – Nunca, como lendo as suas páginas hoje recebidas eu compreendi a misteriosa frase do protagonista do «Eu-Próprio o Outro»! «Ter-me-ei volvido uma nação?» Já o ano passado de resto numa carta para aqui foi você o primeiro a aplicar esta frase a si. Mas era, creio, sobretudo pelo aparecimento de Caeiro & C.a – isto é, restritamente: da criação de várias personalidades. Enquanto que eu aplico hoje a frase, sentia-a lendo as suas páginas, não por essas várias personalidades, e o Dr. Mora à frente, criadas: mas, em conjunto, pelo drama que se passa no seu pensamento: e por toda a sua vida intelectual – e até social, que eu conheço. É assim meu querido Fernando Pessoa que se estivéssemos em 1830 e eu fosse H. de Balzac lhe dedicaria um livro da minha Comédia Humana onde você surgiria como o Homem-Nação – o Prometeu que dentro do seu Mundo Interior de génio arrastaria toda uma nacionalidade: uma raça e uma civilização. E é bizarramente este último substantivo que me evoca toda a sua grandeza: «toda uma civilização» é, meu querido Amigo, o que você hoje perturba- doramente se me afigura. São ridículas talvez as frases acima – elas porém exprimem o que eu sinto: que sejam um pouco «rastas» os termos que emprego eles são os que melhor exprimem o que eu quero dizer. E é meditando em páginas como as que hoje recebi – procurando rasgar véus ainda para além delas – que eu verifico a nossa grandeza, mas, perante você, a minha inferioridade. Sim, meu querido amigo – é você a Nação, a Civilização – e eu serei a grande Sala Real, atapetada e multicor – a cetins e a esmeraldas – em douraduras e marchetações. Nem mesmo quereria ser mais... E sê-lo-ei? Vê: tem medo o meu querido Amigo, confia-me, na crise em que ora se debate de se haver enganado: pois para si criar beleza não é tudo, é muito pouco – que «beleza» a ferro e fogo eu juro que você criou. A meus olhos pois o seu medo pode unicamente ser o de haver «criado beleza errada». (Estou certo que não, mesmo assim – é mera hipótese a minha suposição: um dia breve você encontrará a linha que ajustará tudo quanto volteia antagónico no seu espírito e tirará a prova real da sua «razão».) Mas o meu caso é bem mais terrível a certas horas: Para mim basta-me a beleza – e mesmo errada, fundamentalmente erra- da. Mas beleza: beleza retumbante de destaque e brilho, infinita de espelhos, convulsa de mil cores – muito verniz e muito ouro: teatro de mágicas e apoteoses com rodas de fogo e corpos nus. Medo e sonambulismo, destrambelhos sardónicos cascalhando através de tudo. Foi esta a mira da minha obra. Creio tê-la ganho às vezes. Mas a certas horas... E debruço-me então perdido sobre as minhas páginas impressas: não a ver se elas estão «erradas» – pouco importaria – mas a ver se na verdade fascinariam pelos seus lavores coloridos a criança febril que as folheasse: como eu horas esquecidas aos 9 anos passava lendo e relendo Gil Brás de Santilhana: porque a edição era ilustrada com litografias multicores... Certo céu azul duma delas, juro-lhe que nunca o esqueci. E isto não é literatura – será apenas expressão literária duma realidade. E quem me dirá se me enganei ou não? Perturbador enigma... Enfim... Não quero de modo algum profanar a sua carta com mais considerações pessoais. Apenas lhe digo que me emocionou profundamente, que julgo tê-la vibrado e compreendido intimamente. O drama atinge a sua culminância na aparição de duas teorias diferentes – sobre o mesmo caso – e igualmente certas. Seria até o assunto para um drama em romance ou teatro: assunto que por força seduziria Ibsen. Comovidamente «obrigado» portanto pela sua carta de hoje, meu querido Fernando. Suplico-lhe é que nunca deixe de me escrever essas grandes cartas. Se soubesse como me faz bem, como sou feliz lendo-as e respondendo-as. Aqui como em Lisboa – mas aqui mais intimamente – você é o meu único companheiro. Lembre-se pois sempre de mim. Escreva-me muito, muito. Eu farei o mesmo. – Espero muito interessado a sua opinião sobre o que ontem lhe contei da «Novela Romântica». Mas não hesite em dizer-me que não a devo tentar escrever se assim se lhe afigurar. Eu tenho muitas dúvidas, de mais a mais. Que nada o iniba portanto – peço-lhe em nome da sua amizade. (E aproveito a ocasião para agradecer as gentis primeiras linhas da sua carta sobre este capítulo de «amizade». Creia que, da mesma forma, as poderia, eu, ter escrito a você.) Por hoje, nada mais. Francamente não sei como se há-de organizar o Orfeu III... Fale sobre este assunto, e outros mais. Ainda que mínimos.

Adeus. Mil abraços e de toda a alma

do seu, seu

Mário de Sá-Carneiro

 

Um conselho de economia: A sua carta de hoje vinha franqueada com 8 centavos. Mas olhe que me parece bem que não excedia os 20 gramas. E o Estado não nos agradece... Mais abraços o S-C.

Ciente sobre as «7 Canções de Declínio». Vejo que lhe agradaram e isso muito me satisfaz.

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5665
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre folhas lisas e sobrescrito.
Dados de produção
1915 Agosto 24
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.