Arquivo virtual da Geração de Orpheu

Mário de Sá-Carneiro

O Arquivo Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), poeta modernista, inclui correspondência, cadernos e manuscritos, bem como a obra publicada no seu tempo de vida. Muitos destes documentos foram reunidos por François Castex, professor e escritor francês, e encontram-se conservados na Biblioteca Nacional de Portugal. Reúne-se aqui também o conjunto das cartas enviadas pelo autor ao seu amigo Fernando Pessoa, guardadas no espólio E3 da Biblioteca Nacional.

Os documentos completos encontram-se no campo “PDF” e os manuscritos foram transcritos no campo “Edição”. 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/6_36
Esp.115/6_36
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Paris, no dia 22 de Agosto de 1915. 

 

 **

 

Paris – Agosto 1915

Dia 22

 

Meu Querido Amigo,

 

Recebi hoje o seu postal de 18 que muito agradeço. Amanhã irei ao Bureau dos Italianos ver se ainda lá encontrarei a sua carta de 29 p. p. Com efeito quando em 29 R. Victor Massé recebi a sua primeira corres- pondência julguei por uma frase onde você aludia à complicação do endereço posta-restante e às desculpas de não ter escrito – que, em verdade nunca houvesse escrito para o bureau e assim por lá nunca mais passei a indagar. Veremos se amanhã consigo obter a sua carta. Mas parece-me já tarde. Que pena! Ansioso fico esperando a sua carta-relatório. Oxalá ela não demore muito. – Ontem enviei-lhe um postal queixando-me já do seu silêncio. Perdoe-me. Mas se você soubesse como as suas cartas me são necessárias! É que você, meu querido Fernando Pessoa, é, em verdade completa, o meu único camarada. E longe sinto-o melhor – e longe, tendo cartas suas, essa camaradagem parece-me talvez mais estreita, mais próxima. Seguramente a época da minha vida em que vivi mais ao lado do meu Pai – foi no ano em que estive em Paris e nos escrevíamos todos os dias. – Belas saudades dessa época! Tanta glória! Paris revelado – tão mais belo, por novo – e surpresa! Depois o meu espírito que se desvendava – as minhas obras que se projectavam – tanta perspectiva em minha face! Dois anos só – e tão longe... tão longe... Que vontade de chorar, meu querido amigo. Escreva-me então muito, sim? – Recebi já dinheiro do meu Pai, de Lourenço Marques: 250 francos, que foi o que eu lhe pedi para me dar por mês. Isto parece indicar que concorda na minha permanência aqui. Entretanto receio que surjam complicações. Vamos a ver. Nada sei pois ainda ao certo. Mas antes de um mês não sairei daqui. Podemos, pelo menos, contar com isso... (O meu Pai apenas me mandou o dinheiro telegraficamente – mas por intermédio dos bancos, sem juntar nenhuma resposta – o que se compreende pelo preço elevadíssimo das palavras: do envio porém justamente da soma mensal que lhe pedi concluo o seu assentimento. Mas vamos a ver as complicações) – Mais de mim: Sabe você, muito pouco. Entretanto seria feliz, que[r] ver como: se me dessem a garantia de nunca mais sair daqui, tal e qual como estou – mesmo até numa ordem de prisão que me estabelecesse o termo de Paris como residência. Figurei-me outro dia num café que era assim tal e qual – e senti-me feliz: Vida solitária, sem conhecer ninguém e sem acidentes, parada de alma e corpo. Mas garantida. Depois de escrever mais dois ou três volumes seria até um fim de vida muito belo. Que nunca mais se soubesse de mim... Que vivia entanto, e estava em Paris. Aonde? Perdido. Solitário e pelos cafés baratos. Mas esta mesma tristeza é ilusão. E a minha vida seguirá à tona de rios que sejam ora travessas ora becos sem saída – mas, vamos lá, tenhamos ainda essa esperança – d’água limpa... Parece-me em todo o caso que a minha alma, definitivamente, fugiu pela Torre Eiffel acima... (Ao Franco escrevi ontem que ela não era hoje mais do que uma bexiga de Carnaval, estoirada...) Apesar de tudo, cá ando... E com tanta vontade de me segurar... Na minha 1.a carta lhe direi um novo projecto literário de novela: «Novela Romântica». Coisa esquisita: suponha você um Lúcio, um Inácio de Gouveia – enfim um dos meus personagens-padrões lançado em pleno período romântico, vivendo um enredo ultra-romântico: um Antony interseccionista, numa palavra. Na minha próxima carta lhe falarei largamente da história – que, esta, me parece que vou escrever – pela sedução do cenário e do ambiente. Adeus meu querido Fernando Pessoa. Não se esqueça de mim.

Um grande, grande Abraço.

o seu
Mário de Sá-Carneiro

C. Rodrigues ainda está em Lisboa?
Decididamente o Guisado cortou as relações connosco?
O endereço completo do Franco a quem eu pedi enviassem Orfeu 2, é este: Matricule 750 2ème Regiment Étranger 2ème Regiment de 195

Marche Bataillon G. 3ème Section 4ème Compagnie Secteur postal n.o 109 – France.

Mais saudades!

o S-C.

Escreva!... Escreva!...

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5663
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre folha lisa e sobrescrito.
Dados de produção
1915 Agosto 22
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.