Arquivo virtual da Geração de Orpheu

Mário de Sá-Carneiro

O Arquivo Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), poeta modernista, inclui correspondência, cadernos e manuscritos, bem como a obra publicada no seu tempo de vida. Muitos destes documentos foram reunidos por François Castex, professor e escritor francês, e encontram-se conservados na Biblioteca Nacional de Portugal. Reúne-se aqui também o conjunto das cartas enviadas pelo autor ao seu amigo Fernando Pessoa, guardadas no espólio E3 da Biblioteca Nacional.

Os documentos completos encontram-se no campo “PDF” e os manuscritos foram transcritos no campo “Edição”. 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/6_30
Esp.115/6_30
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Paris, no dia 7 de Agosto de 1915. 

 

 ** 

 

Paris – Agosto 1915

Dia 7

 

Meu Querido Fernando Pessoa,

Recebi ontem o seu postal de 2 que muito do coração agradeço. Você decerto já me perdoou a minha última carta – mas, de joelhos por ela lhe venho suplicar perdão. Nunca julguei que uma carta pudesse levar tanto tempo de Paris a Lisboa. Assim logo que foi 6.ª-feira comecei a pasmar da ausência do telegrama – agravada pela falta completa de notícias suas para a Posta-Restante – Bureau n.º 8, Boulevard dos Italianos... Creio bem que você compreenderá – e me perdoará essa carta. De resto escrevia-a sobretudo por uma questão de «guigne» que me é muito peculiar: sim escrevendo aquela carta – e o sarilho hilariante dos bilhetes ao Vitoriano e aos «prezados senhores» A. Xavier Pinto & C.ª – havia mais probabilidades em que me chegasse o telegrama e a sua resposta – como de facto aconteceu – volvida inútil toda essa trapalhada. Nesse caso posso contar com o seu perdão, meu querido Fernando, não é verdade? Muito bem.

– De mim? Ah, de mim, meu pobre amigo não sei. Olhe, cá estou. E é tudo. Já é alguma coisa, concordemos. Enfim... Espero uma resposta telegráfica do meu Pai a uma carta que lhe escrevi daqui no dia da minha chegada: 15 de julho. Depois, não sei. Eu pedia-lhe nessa carta que me deixasse, por tudo, ficar aqui – pelo menos até me mandar ir para a África. Em suma, bem frisado: tudo menos Lisboa. Ignoro o que ele fará. Vamos a ver. Instabilidade! Mas prefiro-a tanto, tanto, à estagnação! África – outro naufrágio a mais. Deixá-lo – se assim for. Pelo menos, agitação, mudança. Acima de tudo me arrepia a ideia sem espelhos de, sem remédio, novamente fundear no Martinho... Não sei porquê mas esse café – não os outros cafés de Lisboa, esse só – deu-me sempre a ideia dum local aonde se vem findar uma vida: estranho refúgio, talvez, dos que perderam todas as ilusões, ficando-lhes só, como magro resto, o tostão para o café quotidiano – e ainda assim, vamos lá, com dificuldade. Tanto lepidopterismo! Mas você continua a perdoar... Em Paris bocejo, é claro. Mas estou melhor. É outra ilusão. Tenho a força de a manter, entanto – e isso me é lisonjeiro. Pequeninas coisas: a outra noite, o luar sobre a Praça da Concórdia, por exemplo, curou-me por uns poucos de dias. E o poder dizer mais tarde: «Quando os alemães tomaram Varsóvia, estava eu em Paris.» Tão pequeninas coisas. Você pode medir bem o descalabro irremediável da minha vida, do meu espírito e da minha carne – quando, ainda assim, são estes – e os letreiros das ruas dos bairros por onde passo a primeira vez e orgulhosamente leio – os amparos únicos, os lenitivos raros à minha existência destrambelhada... Tenho chegado mesmo a suspeitar nestes últimos tempos se – de facto – já estarei doido. Parece-me que não. Mas o certo é que, mais uma vez, e positivamente, se modificou alguma coisa dentro de mim. O mundo exterior não me atinge, quase – e, ao mesmo tempo, afastou-se para muito longe o meu mundo interior. Diminuiu, diminuiu muito, evidentemente, a minha psicologia. Sou inferior – é a triste verdade – de muito longe inferior ao que já fui. Saibo-me a um vinho precioso, desalcoolizado agora, sem remédio. Estou muito pouco interessante. E não prevejo o meu regresso a mim – isso, que digo nos meus versos da «Escala» – incitação que não será seguida, parece-me. Já vê que não vamos nada bem.

– O que estou ansioso é por uma sua longa carta. Em que me fale de si – e «borde comentários» sobre o que eu lhe escrevo. É para conversarmos. Só a sua companhia me faz falta. E quer ver: muitas vezes ponho-me, de súbito, não sei porquê, a imaginá-lo, aqui num café de Paris, comigo, em minha frente, sentado à minha mesa. Ainda outro dia, frisantemente – num bar ordinário para Montmartre. Gosto tanto de si! A menos certas «dispersões» e certos «falares baixos» você realiza para mim «aquilo que unicamente eu admito que se seja». Mas tenho-me dito isto tanta vez... Escreva muito, e breve – sim?...

– Junto lhe mando uma extensa versalhada. Não sei bem o que aquilo é. Inferior, não há dúvida. Mas duvido se, em todo o caso, interessante. Muito antipáticas certas passagens. Mas sabe, aquilo é «relativamente». Pode crer que eu sou seu amigo, e não fiz de você chauffeur, no meu afecto. Literatura, claro – é preciso deitar água na fervura. Acho mais graça à 5.ª canção. Efectivamente, sinteticamente, o que anseio pôr na minha vida é tudo aquilo. Justamente: e não imagina como me são encantadores, os «defeitos duma instalação provisória»: a mala ficou na estação – temos que ir comprar colarinhos para mudar. E não vale a pena mandar buscar a mala, porque partimos amanhã. Assim acho piléria a essas quadras. Uma observação: o Matin fica em pleno Boulevard: é todo envidraçado, vendo-se trabalhar as máquinas rotativas e as Linotype – cujo barulho dos teclados se sente distintamente, amortecido, da rua. Esse barulho sintetiza para mim a ânsia do «papel impresso», a beleza das tipografias – o sortilégio moderno «da grande informação». Sinto isso tanto – tanto me embevece, quando passo em frente do Matin, o discreto martelar das Linotype que até deixei ficar o verso forçado, como verá. É como o encanto das grandes paredes a «ripolin» e dos anúncios eléctricos pelos telhados de que falo na mesma quadra. Seja como for os versos que hoje lhe mando são lamentáveis – um «triste produto».

Mas, se tiverem qualquer interesse artístico – pouco me importa. Rogo-lhe muito assim, meu querido Fernando Pessoa, que me fale detalhadamente deles, me diga a sua opinião com a maior franqueza – e me aconselhe mesmo se devo eliminar qualquer das canções. Esses versos indicam queda, miséria – não há dúvida – sejam encarados por que lado for: moral ou literário. Assim acho muito bem o título genérico de «Sete Canções de Declínio». Não lhe parece? Enfim fale-me largamente disto tudo – como noutros tempos fazia.Tenha pena de mim. Não me roube o seu convívio moral e literário. Escreva-me uma grande carta! Conto consigo!

– Cubismo: julguei em verdade que tivesse desaparecido com a guerra: tanto mais que certos jornais diziam que os cubos do caldo (bouillon kub) e da pintura eram boches. Mas no Sagod – negociante de quadros que acolheu os futuristas e os cubistas, e não vende doutra mercadoria – não só estão expostos muitos quadros cubistas, como – oh! pasmo! – um da guerra; última actualidade: sim: um «tank entre shrappnels». A rua do «marchand» é de pouca passagem, mas sempre gente parada defronte, rindo: como em face da nossa montra do Orfeu ... A propósito: dizem-me da livraria que não se tem vendido. Paciência. E nada mais saiu sobre ele? Parece que não – caso contrário você não se teria esquecido de mo dizer no seu postal. Tenho muita pena.

– Óptimo, meu querido Amigo. Vou terminar. Ainda uma vez lhe imploro mil perdões pela minha última carta – e de joelhos prostrado lhe suplico que escreva uma grande carta-relatório. As suas cartas deste género são para mim um complemento de Paris. E desta vez ainda não tive nenhuma! Anseio-as, tanto mais que, na incerteza do tempo que me demorarei aqui – ficaria inconsolável se nenhuma tivesse recebido. Claro que se de súbito resolver sair daqui – isto é: se de súbito a minha vida se resolver em eu sair daqui – lhe telegrafarei os meus habituais telegramas. Escreva-me pois uma grande carta na volta do correio: por amor de Deus!!... (O Pacheco sempre virá a Paris? Não o tem visto?) Recomende-me muito ao Vitoriano. E para você um grande abraço de toda a alma.

O seu, seu

Mário de Sá-Carneiro

 

29 rue Victor Massé

 

E de vida literária sua e do nosso Álvaro de Campos? Diga o que há, hein?...

Escreva uma carta-relatório!!...

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5657
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre folhas quadriculadas e sobrescrito.
Dados de produção
1915 Agosto 7
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Álvaro de Campos
Vitoriano Braga
José Pacheco
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.