Arquivo virtual da Geração de Orpheu

Mário de Sá-Carneiro
Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/5_8
Esp.115/5_8
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Paris, no dia 15 de Junho de 1914. 

 

 **

Paris – Junho de 1914

Dia 15

 
Refugio-me da chuva, meu querido Fernando Pessoa, num café lepidóptero em face da Avenida da Ópera. São 3 horas da tarde e às 3 1/2 devo estar no Riche com o José Pacheco. Entanto esperemos que a chuva passe. É verdade, antes de mais nada recebi hoje a sua 1.ª carta que muito me interessou e acima de tudo agradeço.

Estado moral e físico: Preocupa-me sobretudo o estado físico neste instante – enervado, meu caro amigo, por uma audaz constipação. Sobre o moral – deixemo-lo para outra carta. Mesmo não há nada de interessante – apenas hoje sozinho, o meu pai tendo partido às 12.16 começo a instalar-me em Paris. Mas a glória de novo a encontrar e vibrar, laivada de cinzento no entretanto pela atmosfera sempre dolorosa do meu mundo interior, tem-me dispersado todos estes dias – vivendo em verdade até hoje só em metade de mim – como até raciocinei esta manhã ao almoço em que verdadeiramente, lucidamente me senti meio só (agora houve um trovão!...), embora o estofo do banco se amarfanhasse sob uma inteira pessoa nutrida...

Gente conhecida: Estive antes de ontem, chamado pelo Pacheco, na Closerie à meia-noite. Que horror, meu amigo! Que horror!... Perto de nós havia um grupo português... ah! mas portugueses carbonários. Da Brasileira, meu amigo, da Brasileira! Castañés! Castañés!... – Roguei logo ao Pacheco que não me apresentasse! E que provincianos até no aspecto físico!... Mas artistas... Chiça, meu amigo! Chiça! Desculpe – e é para não empregar outra palavra! Entre eles ondulava o Fonseca – que já dissera mal de mim ao Pacheco (pudera!) e me apertou a mão ultrageladamente. Eu enquanto falava ao Pacheco, (sempre dos nossos, europeu e intenso – um óptimo companheiro)1 fazia jogos malabares com a voz... Lepidópteros! Lepidópteros! Mereciam que os ungissem de bosta de boi!... E não haver uma lei que proíba a exportação de semelhantes mariolas!... Sujam, enchem Paris de escarros verdes! Castañés! Castañés!... Assim raras vezes voltarei à Closerie. Para tanto, mais valia então ficar por Lisboa! Hoje hei-de voltar, à noite, tendo encontro com o Santa-Rita... E eis-me à espera dele – não à espera propriamente, pois estou a escrever ao meu querido Fernando Pessoa na Closerie. Acidentadíssima portanto esta carta – pois foi escrita em 2 cafés e a 2 horas diversas. Estive toda a tarde com o Pacheco que lhe manda muitas recomendações – insultando os lepidópteros daí e daqui. (Iniciei o Pacheco neste nosso termo paúlico – é claro).

Petite-Semaine: Mando-lhe um artigo do último número que acho uma verdadeira trouvaille.

Por hoje nada mais lhe digo – eu próprio muito lepidóptero em vista da constipação já anunciada – apenas lhe digo que hoje não quereria você estar em Paris, pois fez à tarde uma estrondosa trovoada – de resto a primeira a que assisto nesta terra.

Adeus, meu querido, querido Amigo. Escreva sempre. Dê-me novidades daí e mande-me sobretudo, se lhe for possível, a crítica do Caiola sobre a «Distância».

Um grande abraço do seu

Mário de Sá-Carneiro
Saudades ao nosso Alberto Caeiro. Muito interessante a ode do M. da Veiga. Adeus.

P. S. – Apareceu agora o Santa-Rita – muito amável. Mas estava com o irmão do H. Franco, isto é: Fonseca n.º 2. Assim pediu desculpa e marcámos rendez-vous para depois de amanhã.

 

1 Cessou a chuva. Estou no Café Riche. 
 
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5543
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre folha lisa e sobrescrito.
Dados de produção
1914 Jun 15
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Alberto Caeiro
José Pacheco
Santa-Rita
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.