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Mário de Sá-Carneiro
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Mário de Sá-Carneiro
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Sá-Carneiro, Mário de
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Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris, a 21 de Abril de 1913.

 

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Paris – Abril de 1913 Dia 21

Meu querido amigo,

 

Recebi ontem a sua carta e mais uma vez lhe peço perdão de outro dia lhe ter enviado um postal. O meu amigo é tão amável, escreve-me cartas tão longas que na verdade é exorbitar ainda em cima lhe escrever postais a pedir resposta! Mas perdoa-me, não é verdade? Claramente que lhe agradeço não só a sua carta, mera carta, como, duplamente, aquilo que ela contém – a sua opinião inteligente e franca. Muito obrigado. Tenho a sua carta aberta diante de mim. Vou-a percorrendo ao mesmo tempo que lhe escreverei esta, respondendo àquilo que resposta me sugerir.

Diz você que, na sua opinião, do Ponce e do Correia d’Oliveira, no «Bailado» eu transbordei. Eu acho preferível outro termo: transviei. E daí a falência da obra. Já o receava – e a sua carta veio-mo confirmar. Com efeito eu recitava o «Bailado», e achava bela a melodia, mesmo o conjunto. Achava beleza, mas essa beleza não me satisfazia de forma alguma. E eu esquecia-me até dessa obra que tanto me agradava ao recitá-la.

 

Esquecia-me de que a tinha concluído – isto é: instintivamente não a considerava, não cria na sua existência – porque em verdade ela não existe. E no entanto, veja, ainda hoje creio na sua beleza – simplesmente essa beleza é uma beleza errada. Não é uma falsa beleza, é uma beleza errada. Daí eu aceitar a conclusão da sua crítica, condenar o meu trabalho, condená-lo mesmo à morte, e no entanto estimá-lo. Isto é muito difícil de fazer compreender. Deixe-me explanar imodestamente: No «Bailado», eu acumulei beleza em volta de nenhuma armadura, acumulei beleza à toa, uma sobre a outra, e assim o total, composto de coisas belas, ficou inexpressivo, nada atraente – sem valor numa palavra. Quanto a mim o defeito primordial da obra é, como eu já pensava, o título ser indiferente: tanto importaria: «Bailado», como «Sonho d’Ópio», «Música», etc. (O «Bailado» não será no entanto um simples bailado de palavras? Ir-se-ia embora toda a significação material, para ser só a do ritmo de sons e ideias? Isto sou eu ainda a querer salvar-me num esforço, aliás inútil. Diga entanto o que pensa sobre este «remédio».)

No princípio e especialmente as primeiras linhas, acha-as você belas. E sabe porquê? É que eu aí comecei compondo apoiado; lembrando-me do baile, procurando-o traduzir artisticamente. «Tudo horizonte, só horizonte» porque o pano se erguia sob um cenário maravilhoso de cor, onde tudo era silêncio, e ao longe horizonte crepuscular e vermelho. Mas em breve um ruído brusco de silêncio – o voar dos pés nus da dançarina – vinha animar o quadro.

Ainda me apoiei algumas linhas, mas em breve atacado da bebedeira de palavras – o que não é o mais grave: o pior é que essa bebedeira é também de ideias, sobretudo no final – me transviei. Não mais me lembrei da dançarina, só me lembrei de sons falsos, de ideias que saíam do quadro. E daí a ruína. Por isso muita razão tem você quando diz que as minhas frases nenhuma impressão lhe dão de bailado (a não ser talvez, relembro na acepção de bailado, de redopio, de ideias e palavras).

Contra um pormenor mínimo da sua crítica me insurjo. É quando diz que «sombra ungida» não quer dizer nada. Quer, olhando toda a frase: «A grande esfinge platinada da luz do sol faz sombra ungida». Sim. Um outro obstáculo faria simplesmente sombra; mas a esfinge, a grande esfinge misteriosa e simbólica faz «sombra ungida», sombra sagrada, por ser feita pela esfinge. É um detalhe mínimo, que nem belo chega [a] ser, mas que é significativo. Parece que isto se não pode negar.

Eu não empreguei o ungido simplesmente por ser uma palavra bonita e em moda. Mas isto, nenhuma importância tem. Não concordo com a condenação que faz das linhas a partir de «olha o carro de triunfo». Elas não serão belas, mas são das raras que eu julgo traduzirem o bailado. Não serem belas, mas estarem certas. «Aonde pasme a grande fera» é tão mau que eu já cortara.

Vê-se bem que eu realizei tão mal – isto é, não realizei – o que pretendi que é exactamente quando mais fujo, mais divago que atinjo beleza. Assim, segundo você (e eu concordo plenamente) atingi beleza em 3 e em 5. Em 4, no nevoeiro, sou incompreensível. Ora aqui, foi um dos instantes aonde de novo me quis apoiar. Nevoeiro eram simplesmente as gazes que envolviam a dançarina numa neblina dourada, que tumultuava em flocos em volta da sua carne, mas que não ocultava, como acontece com a neblina real, ao contrário desvendavam; visto que os véus só eram neblina ao voltear, e volteando, descobriam a carne.

Quanto às maneiras que você diz poderem ser aplicadas à tradução dum bailado devo-lhe dizer que segundo o meu intento foi a terceira maneira que eu quis empregar. Mas nem mesmo ela. Eu decidi como princípio fundamental, nem por sombras falar na bailadeira. Pôr de parte o instrumento, para só realizar a sua obra. A empresa, concorde, era difícil. Eu desejei executar com palavras, o mesmo que a dançarina executava com o seu corpo, auxiliado pela música, pela cor (o cenário), pela luz. Sucumbi, é claro. Isso não oferece a mínima dúvida; sou eu como já disse o primeiro a reconhecer.

Entretanto – e é isto o que mais me penaliza – há no «Bailado» algumas frases que sinceramente eu acho muito, muito belas. São as mesmas que você destaca, é sobretudo a parte que antecede o final: «Numa incerta nostalgia» até «Vivo em roxo e morro em som». E é esta a tortura: como salvar essa beleza? Porque o «Bailado», como bailado, está inteiramente, mesmo mais do que inteiramente falhado. Não é uma obra a emendar, a corrigir. É uma obra a fazer. E sendo assim dificilmente se poderão aproveitar frases deste escrito, porque só a preocupação de as aproveitar iria perniciosamente influir sobre a nova composição. Que diz você a isto?

(Cabe-me felicitá-lo entre parêntesis pela maravilha de inteligência e arte que são as páginas em que você analisa a maneira de realizar um bailado, e de lhe repetir os meus agradecimentos; ou melhor, meu querido amigo: a minha gratidão. Há uma nuance...)

Quanto ao «Além».

O sujavam deve-se na verdade eliminar. Sabe porque eu o empreguei. Vai ver: é curioso e infantil. Foi para ter a impressão de coisas a correr sobre o corpo pelo abrandamento sucessivo da gutural: sulcavam, sugavam, sujavam. Mas em verdade sonicamente não dá a impressão desejada e a palavra é imprópria e, sobretudo, feia.

Os círculos aguçados, é simplesmente um disparate e um disparate inútil (dando de barato que existam disparates úteis...) Com efeito para dar a impressão de círculos fantásticos, lá estão os dois termos enclavinhados, impossíveis, que me parecem fortes e possíveis. Tem razão no que diz a seguir sobre o fim do parágrafo. Mas ele ainda não está na sua forma definitiva.

Aceito a «explicação psicológica». Ela é bem real e inteligentemente esboçada. Abstraia entanto da influência de Paris. Ela não existe, parece-me. E daí talvez exista insensivelmente... Compreendo perfeitamente o que quer dizer com as influências da sua obra. Elas mesmo não podiam deixar de existir em mim. Tudo o que me entusiasma, me influencia instintivamente. E só me orgulho por isso. Só quem teve dentro de si alguma coisa pode ser influenciado. Quando este Verão nos encontrarmos, muito lhe falarei do meu eu artístico; das minhas qualidades, dos meus defeitos. E tudo se reduz nisto, dito sem modéstia: uma imaginação admirável, bom material para a «realização»; mas um mau operário – pelo menos um operário deficiente, que se distrai, se esquece e envereda. Uma falta de equilíbrio, em suma. Não acha que tenho razão. Não se esqueça de mo dizer sinceramente, rudemente. (A falta de equilíbrio vem sem dúvida de que eu sou um «desequilibrado» e o fui sempre desde criança.) (Quando acima escrevo «imaginação» não me refiro só à ideia duma obra, à pura imaginação, mas também à imaginação da sua realização que se encontra em simples frases, não só no total da narrativa. É possível que não me compreenda aqui, mas não lhe sei dizer doutra forma.)

Tomo nota do que você diz por último do «Bailado», acerca da sua música e que é muito elogioso.

Zango-me por o meu caro amigo me dizer que não me ofenda por ir compor um bailado. Só me alegro por isso, unicamente lhe pedindo que assim que o execute mo envie bem como o do Correia de Oliveira a quem peço que transmita o que digo nestas linhas, com os meus cumprimentos.

Vi as linhas da Águia e achei também imensa graça. Aquilo deve ser do Álvaro Pinto.

O n.º do Teatro com o artigo sobre o S. Pinto, recebi-o e tenho quase a certeza que lhe falei sobre o assunto numa das minhas cartas, referindo-me até entusiasmado às frases fustigantes que você tinha escrito. Mas talvez esteja em erro. Não se esqueça de me enviar o n.º 3 quando puder.

Banido o «Estudo a Ruivo», especialmente pelo Sherlock Holmes.

Sobre o Gomes Leal com todo o gosto concorrerei com alguma coisa. Darei ordem ao meu pai. Mas como fazer-lhe chegar o dinheiro às mãos, a si? Indo buscá-lo a minha casa? Diga-me e na volta do correio eu lhe direi quando pode ir a minha casa, se for este processo que escolher.

As provas do «Homem dos Sonhos» se não chegarem a tempo de eu as rever não faz mal, pois confio inteiramente em Fernando Pessoa, o revisor.

Duas ideias novas que aqui lhe escrevo, copiando textualmente o apontamento telegráfico que tenho num projecto:

– «Fixa na rua um homem que lhe lembra outro já morto (o seu professor alemão) pois se parece muito com ele. E o desconhecido fixa-o também. Parece que também o reconhece. De novo se encontram num café. E falam. O desconhecido é alemão... E conta-lhe que o fixou por se parecer imenso com um seu discípulo morto já... – Disto, dar a ideia das coisas incertas que na vida por vezes vivemos, das zonas claro-escuro que nela existem (como às vezes, ainda acordados, como que começamos a sonhar, despertando logo porém desse vago sonho, que não temos a certeza se existiu). Fazer passar a incerteza do próprio encontro, do episódio.»

– «A estranha obsessão dum homem que ama uma mulher que se lhe entrega toda, mas que ele não pode possuir inteiramente porque a sua beleza se lhe afigura móvel, nunca fixada. Assim, um dia mata-a. A beleza finalmente deixa de correr, pára. Ele possui-a toda nesse corpo morto e pálido, lavado pelo luar. (Obteve a alma da beleza; mas o próprio corpo se transforma em alma. E ele chora a alma e carne perdida. Porque em face dos seus olhos delirantes, a carne se esvai na noite.)»

Estas duas ideias não são muito importantes; entretanto diga-me o que pensa delas.

O Ramos continua no Brasil, aonde parece fixar-se visto que manda para lá ir a mulher. Soube-o por uma carta que escrevi a esta e à qual uma tia me respondeu... Que «complicações familiares...».

Meu querido Fernando, mais uma vez lhe quero exprimir toda a minha gratidão pelos serviços que lhe devo. Nunca lho poderei agradecer. Só lhe peço que continue estimando-me e falando-me, de si e de mim, com o máximo desassombro.

Um grande abraço.

o seu
Sá-Carneiro

Atrevo-me a pedir-lhe que me responda o mais breve que puder!

E pergunte ao Ponce, da minha parte, se está bom de saúde... Mais um abraço

o S.-C

 

 

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Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre 3 folhas lisas e timbradas (dobradas).
Dados de produção
1913 Abr 21
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
António Cardoso Ponce de Leão
Correia d’Oliveira
Álvaro Pinto
Sherlock Holmes
Gomes Leal
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115/4
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.