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Mário de Sá-Carneiro
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Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/4_29
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Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris, a 25 de Março de 1913.

 *

 

Paris 25 março 1913


Meu querido Fernando Pessoa,

Recebi hoje a sua carta que muito e muito agradeço. Eu não sei mesmo como agradecer-lhe todas as suas gentilezas. Percorrendo a sua carta eis o que tenho a dizer-lhe sobre cada um dos seus parágrafos:

– É muito verdadeiro e lúcido o que você diz acerca do cubismo. Plenamente de acordo. Desse Amadeu Cardoso tenho ouvido falar muito elogiosamente ao Santa-Rita e vi uns quadros dele, sem importância e disparatados no Salão de Outono. Tratava-se duma turbamulta de bonecos – era um inferno, um purgatório ou qualquer coisa assim. Sei que é um tipo blagueur, snob, vaidoso, intolerável, etc. etc. Parece que não se pode ser cubista sem se ser impertinente e blagueur...


– Muito obrigado pelas coisas demasiadas que me diz a respeito do «Homem dos Sonhos». Mande pois o conto para o n.º de Maio – e com a antecedência necessária, se for possível, para eu poder ver as provas. Agradeço-lhe muito as indicações que me der para possíveis retoques. Não tenho nada a desculpar-lhe! Repito: nunca me peça desculpas por coisas destas. Só lhe tenho a agradecer o interesse que mostra pelos meus escritos.

– Acerca de «Aquele que estiolou o Génio» é certo o que você diz. Entanto esse conto está-me completamente amadurecido e julgo realizá-lo satisfatoriamente. Sabe que durante um segundo me passou a ideia de fazer do homem uma mulher? Digo-lhe isto apenas por pormenor curioso pois pus a ideia de parte. Que lhe parece? Sobre o «Bailado», é claro que só da real visão se pode dizer. Vão em separata alguns excertos desse «sonho». Tome-os apenas como frases soltas, não corrigidas e ainda longe do total – apenas esboços a carvão.

– Lastimo o que me diz acerca de «actividades literárias». O que é preciso é reagir... e vencer. Mas a vitória é dificílima, sobretudo quando as pequenas circunstâncias nos «raspam».

– Gostava que lesse o «Homem dos Sonhos» ao Ponce se quando o encontrar ainda o tiver.

– Apraz-me muito o surgimento desse folheto «Jogo Franco» de você e Pulido. Faz-se muito sentir a necessidade duma publicação dessas. Mas estimaria que saíssem de vez em quando da política para a Arte. E sairão com certeza. Escuso de lhe dizer que concordo inteiramente sobre o que o Pulido lhe disse sobre você e o Pascoais. A «repetição» ainda que em frases, pensamentos geniais é flagrante na gente da Renascença e mesmo dentro do mesmo poeta. Noto isto mesmo no Mário Beirão e daí achar inteiramente justificado o seu receio sobre a possível monotonidade do Último Lusíada. Coisa que nunca se pode dar com os seus versos, tão grandes, tão variados.

– Belíssimas as poesias que me manda, mas admiro sobretudo a primeira, simplesmente maravilhosa.

– Como você tem razão quando diz: o que precisávamos era podermos conversar! Que saudades, que saudades eu tenho das nossas palestras. Nem o meu querido amigo imagina! Como nos desforraremos este verão!

– É profundamente verdadeiro o que diz sobre a «grande angústia e as pequenas coisas que só ralam». Avanço mais: numa grande angústia, às vezes, pode até um artista ir buscar, ainda que dolorosamente, material e vontade para uma obra de génio. A dor, quanto a mim, pode ser fecunda. Mas nunca a contrariedade. Essa, mesquinha, enervante e torpe, esmaga as maiores energias: é a eterna fábula do leão e do mosquito.

– Sempre que no Teatro vierem artigos seus mande-mo. Porque o meu pai no começo de abril vai para Tancos (Escola Prática de Engenharia) aonde se demorará até julho e não poderá por consequência enviar-mo. Numa folha junta vão pois coisas do «Bailado» – sem ordem e incompletas, em bruto, não desbastadas, repito. Mas dê-me a sua opinião sobre elas. Por mim há alguns pedaços que gosto. É difícil talvez de compreender a orquestração que reside no meu espírito – a música, dos passos do bailado, em suma. Junto também um pedaço do «Além». Sobre ele lhe rogo da mesma forma a sua opinião detalhada. E o mais breve possível. Sobretudo sem piedade nem desculpas.

Adeus, meu querido Fernando. Receba um grande, grande abraço do seu muito saudoso

Sá-Carneiro

P.S. – Quando ler o «Homem dos Sonhos» ao G. Pulido não se esqueça de me dizer a opinião dele.

E do Ramos não se sabe nada?
o S.-C.

Escreva breve!

Olhe que não mudei de hotel. Sempre 50, rue des Écoles. Isto é um café aonde por sinal estou à espera do Santa-Rita.

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5268
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre 2 folhas pautadas e timbradas.
Dados de produção
1913 Mar 25
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
António Cardoso Ponce de Leão
Santa-Rita Pintor
Amadeo de Souza-Cardoso
Teixeira de Pascoais
Garcia Pulido
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115/4
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.