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Mário de Sá-Carneiro
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Mário de Sá-Carneiro
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Sá-Carneiro, Mário de
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Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris, no dia 10 de Março de 1913, com anexo de produção literária: «Bailado».  

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Paris – março de 1913 Dia 10

 

Meu querido Fernando Pessoa,

Recebi hoje a sua carta e o n.º do Teatro que já vira pois o meu pai mo enviara. A 1.ª coisa que fiz, é claro, foi mostrar a página cubista ao Santa-Rita que deu pouca sorte embora ficasse triste, no fundo. Tanto mais que gosta muito da Ester – gostar de amor – e ela vinha na capa... Atribuiu a vingança do Eduardo de Freitas por causa de questões antigas – biberons do Freitas; cena de Trem no Bosque e mulher descompondo, dele, Santa-Rita, ao Freitas. Eu não sei sequer se isto é verdade. Interrogue o Freitas sobre o caso. O meu amigo fez bem em fornecer o meu informe. Entanto, gostava pouco que o dissesse ao irmão, vindo assim a sabê-lo o Guilherme. Porque o quadro do ruído existe. Tenho-o mesmo no meu quarto aonde ele outro dia o deixou para o mandar emoldurar, oferecido ao Homem Cristo, filho. Pormenor curioso: O Santa-Rita reconheceu imediatamente que se tratava duma obra do Picabia. Disse até que ia mostrar a coisa ao seu autor para este mover um processo à revista. É claro que isto tudo são faroleiras... No entanto, confesso-lhe, meu caro Pessoa, que sem estar doido, eu acredito no cubismo. Quero dizer: acredito no cubismo, mas não nos quadros cubistas até hoje executados. Mas não me podem deixar de ser simpáticos aqueles que, num esforço, tentam em vez de reproduzir vaquinhas a pastar e caras de madamas mais ou menos nuas – antes, interpretar um sonho, um som, um estado de alma, uma deslocação de ar etc.

Simplesmente levados a exageros de escola, lutando com as dificuldades duma ânsia que, se fosse satisfeita, seria genial, as suas obras derrotam, espantam, fazem rir os levianos. Entretanto, meu caro, tão estranhos e incompreensíveis são muitos dos sonetos admiráveis de Mallarmé. E nós compreendemo-los. Porquê? Porque o artista foi genial e realizou a sua intenção. Os cubistas talvez ainda não a realizassem. Eis tudo. Depois, eu não posso crer que os artistas desta escola sejam pura e simplesmente blagueurs, falidos que deitam mão desse meio para esconderem o seu cretinismo. O mais célebre, o mais incompreensível destes pintores é o espanhol Picasso, de quem tenho visto imensos trabalhos e que é o fundador da escola. Pois bem, nos seus trabalhos antecubistas, esse homem realizou maravilhas – admiráveis desenhos e águas-fortes que nos causam por vezes – com os meios mais simples – os calafrios geniais de Edgar Poe. Eu não posso crer que este grande artista hoje se transformasse num simples blagueur que borra curvas picarescas e por baixo escreve: «O Violinista». Não; isto não pode ser assim. É claro que entre os sinceros e valorosos, fumistas se podem introduzir. Como por exemplo aconteceu com o simbolismo na poesia (As Deliquescências de Adoré Floupette que eram um pastiche e que ingénuos tomaram como um livro real). Resumindo: eu creio nas intenções dos cubistas; simplesmente os considero artistas que não realizaram aquilo que pretendem.

Vai junto o «Homem dos Sonhos» que você então mandará para a Águia. É claro que se não o publicarem por qualquer motivo eu não ficarei ofendido. Entanto deixe-me dizer-lhe que a realização final do conto me agrada bastante. As poucas linhas consagradas ao país onde não há só dois sexos estimo-as muito pois me parece darem bem a impressão do prazer que muitos sexos diferentes embaraçados proporcionariam. Frases novas me agradam também: «E todo aquele silêncio se reunia em música». «Os boulevards sempre ascendendo». «Montanhas mais altas, planícies mais planas, isto é, mais sensíveis», etc. Rogo-lhe que me diga a sua impressão total apontando os defeitos que é claro existem. Mas julgo-o entanto suficientemente amadurecido. Como vê modifiquei inteiramente o final tornando-o o mais vago que pude. Enfim, uma das suas admiráveis críticas – mas sem desculpas. Fale-me das frases que aponto e outras que destaque. As provas, o meu amigo as verá como ofereceu. A pontuação fica ao seu arbítrio. Modifique-a como melhor entender e sem receio. O mesmo com as frases em itálico. O sempre ascendendo, que vai sublinhado, é talvez melhor não o imprimir em itálico. Disso tudo será o meu amigo o melhor juiz. Quanto à ortografia, deve-se conservar a do original; mas é possível que lá vá algum disparate – algum o por u, ç por ss. Se assim for, emende, atendendo unicamente a que lugar e ânsia estão bem respectivamente com u e s. Emmaranhar deixe ir com os 2 mm (Igual, é com i). Se porventura as provas viessem com muita antecedência podia-mas enviar após as ter revisto. Mas isto é inteiramente desnecessário pois muito melhor que eu o meu querido amigo as corrigirá. Para a assinatura vai junto um bilhete de visita e um papel. Não sei o que será mais conveniente. O melhor é enviar o conto já para a Águia. Pode lê-lo ao Ponce de Leão. Ao Ponce de Leão peço-lhe que diga sempre o que vai nas minhas cartas. E das minhas coisas já escritas pode falar a toda a gente (Já escritas, entende-se completas). E por estas maçadas todas, os meus agradecimentos mais sinceros.

Mais dois sonhos incluirei no Além: «Bailado» e «Aquele que estiolou o Génio».

«Bailado» é apenas a descrição sonora e «pintada» do bailado duma dançarina. Foi em face da dança admirável duma dançarina Mado Minty que a ideia me surgiu. Eu tenho lido muita vez que a dança é uma arte sublime, toda emoção, que nos liberta da terra e nos amplia a alma etc. Muitas dançarinas nuas perseguidas pelos tribunais daqui têm evocado a ARTE em face dos conspícuos juízes pouco dados a concordarem com as Phirnées. Eu por mim, até hoje, não pude longinquamente deixar de ir um pouco com os jurados. Dançar... dançar... Arte... arte... Por amor de Deus, eu serei então um bárbaro? Pareciam-me apenas inteiramente indecentes, para esquentar os «vieux messieurs» da orquestra. Esta mesma Mado Minty já a vira dançar e a mesma impressão trouxera do seu corpo esplêndido e sem véus. (Esta dançarina é das mais consideradas artisticamente por uma reprodução célebre que em tempos fez dos bailados do Egipto antigo.) Pois bem pela primeira vez anteontem eu vi uma dança de arte pura e compreendi, na verdade compreendi, os argumentos tantas vezes evocados nos tribunais. E fui muito feliz ao fazer tal constatação. Eu não era o bárbaro que receara. Apenas, pela vez primeira, via uma dança-Arte. E tinha nascido o «Bailado» que, se o conseguir realizar, ficará uma coisa bela.

A ideia «Aquele que estiolou o Génio» – essa agrada-me muito. É porém difícil de explicar. Trata-se dum artista que vai constatando a pouco e pouco o nascimento do seu génio, e que maravilhado, inerte, o vai vendo crescer enternecidamente como uma mãe extremosíssima. Acarinhando-o, embelezando-o. Mas um dia – horror! – verá que à força de o acariciar, de o ter encerrado em casa (como as mães que não querem que os filhos saiam para não adoecer) ele se estiolou e vai morrendo aos poucos até à ruína definitiva – à morte. Será então o desespero, a ânsia ilimitada. Foi como uma mãe louca que sufocou o filho querido. O meu amigo poderá não atingir por esta horrível explicação a beleza que encontro nisto. Mas ela existe, asseguro-lhe. É uma ideia recente mas já amadurecida e que eu espero realizar com facilidade e felicidade. Não sei se haverá outro título melhor.

Actualmente atravesso talvez a melhor quadra da minha vida literária. Uma enorme facilidade de trabalho, como nunca senti. «O Homem dos Sonhos» apurei-o em poucas horas. É aproveitar a onda e brevemente lhe enviarei coisas novas. Não creia que me precipito. Eu mesmo não posso trabalhar senão precipitadamente. Meios-termos, não existem para mim. «O Fixador de Instantes» está completamente amadurecido e orientado para o vago como convém. Será uma narrativa alucinada do próprio protagonista. A ordem dos meus trabalhos vai ser esta: «Além» (ou «Bailado»), «A Orgia das Sedas» (inteiramente madura), «O Fixador de Instantes» e «Aquele que estiolou o Génio». Os outros sonhos escrevê-los-ei após pois ainda não chegaram à completa maturação. Rogo-lhe que me dê opinião sobre as ideias novas que lhe exponho.

Concordo plenamente com a sua crítica à minha poesia menos em dois pontos secundários: O verso «A cada aurora acastelando em Espanha» agrada-me não pelo que diz mas pela sua cor que acho muito intensa e vermelha, cor dada pelas palavras aurora, acastelando e Espanha. Coisa curiosa! A quadra foi feita para este verso. Os dois primeiros, que o meu amigo estima, são uma consequência deste que surgiu isolado. O outro ponto sobre o qual não concordo é com a supressão dos apóstrofes em cor’s e imp’rial. Bem sei que os tratados de poética condenam as elisões e que o apóstrofo é muito desagradável à vista. Entanto acho que no verso em casos como este há toda a conveniência em exactamente diligenciarmos fazer a elisão porque a verdade é esta, ninguém pronuncia co-res ou im-pe-ri-al. Fazendo o verso para ser lido assim, acho a sua leitura pretensiosa e forçada. Apenas há o remédio, para evitar o apóstrofo de conservar as letras, deixando ao leitor o naturalmente não as pronunciar.

Ainda o saltar me sugere uma objecção. O meu amigo diz bem. Mas eu também digo bem. Este saltar é na acepção do tigre que se lança sobre a presa – é o bondir francês que infelizmente não é propriamente traduzido em português por saltar.

Quanto ao resto tem o meu amigo mil vezes razão. Entanto poucas emendas farei na poesia. É que, como muitos pais, a estimo pelos seus defeitos – defeitos que ela não podia deixar de ter em virtude da forma como foi feita. Eu não tinha plano algum quando a comecei. Esperava o Santa-Rita na terrasse dum café. Passou uma rapariga de preto. Eis tudo. E o que nunca supus foi que a concluísse e, muito menos, que ela saltasse para o vago. Foi um divertimento, em suma. E a imitação de Cesário Verde – como se tratava na ocasião dum puro divertimento sem amanhã – foi propositada! Mau gosto é claro. Mas eu estava a brincar. Simplesmente da brincadeira nasceu uma coisa com algumas belezas. E aproveitei-a. Não lhe dando importância, apenas estimando-a. Da Ilustração Portuguesa (aonde não gosto nada de publicar) o António Maria de Freitas andava sempre a pedir ao meu pai coisas minhas. Assim satisfiz o seu pedido mandando-lhe os versos. Verei as provas e nessa ocasião, entanto, farei algumas das emendas que me aconselha. Se se tratasse duma obra em prosa, nunca, é claro, eu procederia assim. Mas são os versos que não surgirão em volume algum, que se perderão. E por isso deixo-lhe os defeitos pelos motivos expostos. Do Repas du Lion do Curel diz o E. Faguet que é um tecido maravilhoso trazendo preso um farrapo imundo. A minha poesia será um farrapo que traz preso um pedaço de seda alguma coisa brilhante. E já é muito para um prosador ter conseguido isto. Enfim, para mim, entre a poesia e a «literatura», há a mesma diferença que entre estas duas artes e a pintura, por exemplo. As minhas horas de ócio são ocupadas, não a pintar, como o Bataille, mas a fazer versos. Puro diletantismo.

As poesias que me envia são outras maravilhas. Acho a «Voz de Deus» completa e genialmente completa na sua nova versão. Entendo que não deve hesitar em raspar os seus aos últimos versos do «Passou»... O «Poente» é das coisas maiores que sei de você. Quanto à ideia que frisa no final da «Queda», não encontro palavras para exprimir a sua grandeza! Meu querido Fernando é impossível que um talento como o seu não ilumine algum dia! Um abraço aonde vai toda a minha admiração, todo o meu culto pelo genial artista que o meu amigo é. E creia na minha sinceridade. Eu já lhe disse que tenho um pavor sem fim do «elogio pelo elogio». Não faz ideia como me orgulho de ser estimado por si como sou, como do fundo de alma lhe agradeço as suas cartas que para mim são actualmente as maiores alegrias, como me orgulho de merecer a sua atenção. Enfim, estas coisas não se podem exprimir.

Na «Voz de Deus» há, esquecia-me de lhe dizer, uma coisa que eu achava preferível modificar é: «Deste pavor, do archote se apagar que me guia». Esta transposição do que encontro-a dura, deselegante, destruindo beleza. Porque não abstrair simplesmente da rima, tão dispensável, e escrever «deste pavor do archote que me guia se apagar». Eu não estou falando em nome da Gramática – é claro – apenas por uma questão de plasticidade. E é muito possível que não tenha razão.

Efectivamente o meu amigo tinha-me falado da volta à ideia de publicar a sua obra num só volume. Acho mais belo, sem dúvida. Apenas mais difícil de realização prática. E por amor de Deus, razões de modéstia não o vão coibir de utilizar esse formosíssimo e grandioso título de Auréola!! Não é fácil de encontrar outro mais belo. Um certo orgulho entendo que vai mesmo bem ao artista (não ao homem).

O seu artigo sobre o Lopes Vieira agradou-me extremamente pelas maravilhosas frases agressivas que contém. Mas é preciso que o poeta apareça!

Este estendal vai terminar.

Peço-lhe que logo que receber esta carta me avise em simples postal da sua recepção e que me dê com a brevidade máxima a sua opinião sobre o «Homem dos Sonhos» guardando para depois as respostas aos outros pontos da minha carta. Suplico-lhe que proceda assim pois não sossego enquanto não tenho a sua opinião sobre os meus trabalhos.

Ainda sobre o «Simplesmente»: O verso «Que as nossas almas só acumularam» deve-se entender assim: que as nossas almas só construíram. Mas céus são nuvens – por isso acumulam-se.

 

Renovo os meus pedidos.

E mil agradecimentos e muitos abraços.

o seu

Sá-Carneiro

 

50, rue des Écoles

Grand Hotel du Globe

 

Vai uma coisa do Pawlowski na Comoedia que acho interessante e verdadeira. Que lhe parece?

Peço-lhe atenção (nas provas) para os espaços entre certos parágrafos.

 

 

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5264
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre cinco folhas dobradas, lisas e timbradas do "Café Riche".
Dados de produção
1913 Março 10
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Santa-Rita
Eduardo de Freitas
Homem Cristo, filho
Francis-Marie Martinez Picabia
Stéphane Mallarmé
Pablo Picasso
Edgar Poe
Adoré Floupette
Águia
Cesário Verde
António Maria de Freitas
Georges Bataille
Afonso Lopes Vieira
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
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Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.