Meu querido amigo,
Eu aviso-o d’antemão que isto vai ser uma catástrofe! Uma carta sem fim, quero dizer. Toca a apertar a letra por causa da franquia.
Vai junto uma poesia. Peço-lhe que a leia ao chegar a este ponto, avisando-o unicamente que não se assuste nem com o título nem com as primeiras quadras naturais. A poesia, ao meio, vira em parábola para outras regiões. Peço-lhe que a leia já porque é mais fácil depois ler o que sobre ela escrevo agora. Mesmo para não tomar conhecimento dela já desflorada pelas citações que vou fazer. Aqui é que é a leitura......................................
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Eu gosto dos versos que o meu amigo teve a pachorra de acabar de ler. Não lhes dou importância, não os amo – gosto, apenas – porque, por razoáveis que sejam, não são versos escritos por um poeta. Logo, são maus versos.
Se gosto deles é por o seguinte – encontro-os verdadeiros. Os crepúsculos que ainda nos prendem à terra – àqueles que sonhamos – e nos fazem sentir um vago pesar pela facilidade – porque é fácil e quente e cariciosa: «Naquela vida faz calor e amor». Mas logo a reacção em face do triunfo maior – a carreira ao ideal. Mais alto, sempre mais alto. Vida e arte, no artista confundem-se, indistinguem-se. Daí a última quadra «A tristeza de nunca sermos dois» que é a expressão materializada, da agonia da nossa glória, dada por comparação. Eu explico melhor. A minha vida «desprendida», livre, orgulhosa, «farouche», diferente muito da normal, apraz-me e envaidece-me. No entanto em face dos que têm família e amor banalmente, simplesmente, diariamente, em face dos que conduzem pelo braço uma companheira gentil e cavalgam os carrousséis, eu sinto muito vez uma saudade. Mas olho para mim. Acho-me mais belo. E a minha vida continua. Pois bem, esses, são a arte da vida, da natureza. Não cultivar a arte diária é fulvamente radioso e grande e belo, mas custa uma coisa semelhante ao que custa não viver a vida diária: «A tristeza de nunca sermos dois.» Compreende bem o que eu quero dizer? Eis pelo que fechei a poesia com essa quadra aparentemente frouxa e imprópria. Há versos que me agradam muito, porque me encontro neles. Assim «viajar outros sentidos, outras vidas, numa extrema-unção d’alma ampliada» é simplesmente o «Homem dos Sonhos». Não acha? (Está-me a achar é muito pouco modesto. Perdoe.) E pelo orgulho desmedido gosto deste verso «Vêm-me saudades de ter sido Deus». Isto é: em face do turbilhão de maravilhas em que o meu espírito se lança eu quase julgo que um dia fui Deus – e desse meu estado me vêm saudades – como se na verdade O tivesse sido. Peço-lhe que leia com a atenção máxima as quadras da 2.ª parte. Todas as palavras foram «pesadas». Não há lá «verbos de encher». Assim este verso: «Sou labirinto, sou licorne e acanto» aparentemente disparatado, não é atendendo que licorne é um animal heráldico e fantástico, acanto (a folha de acanto) o motivo característico dum estilo arquitectónico – isto é beleza plástica – labirinto, emaranhamento. Logo eu quero tratar, entendo que se devem tratar, coisas emaranhadas, erguidas e infinitas, fantásticas e ao mesmo tempo esculpir beleza plástica nas frases. Não trabalhar só com ideias – trabalhar também com o som das frases. Não escrever só – edificar. Mas calo-me pois sei que um espírito como o seu compreende melhor tudo isto do que o próprio que as escreveu. E mes- mo para não ser como o nosso Ramos... Repito: Não dou importância alguma aos meus versos. Como há escritores que nas suas horas vagas são pintores eu, nas minhas horas vagas, sou poeta – na expressão de escrever rimadamente, apenas. Eis tudo. Se não desgosto destas quadras é pelo que elas dizem, não pelo que elas cantam. Logo a sua opinião inteira e rude – despida de perífrases, de todas as perífrases visto tratar-se dum mero diletantismo.
Felizmente ando agora com forças literárias. Muito brevemente lhe enviarei o «Homem dos Sonhos» (dentro de 3 semanas ou um mês, entanto). A seguir concluirei o «Além». As suas notas sobre os trechos que lhe enviei são justificadíssimas e elas vêm-me bem provar a agudeza genial do seu espírito. Desagradava-me, não sabia porquê, a frase «O ar naquela tarde era beleza e paz». Você explicou-me porquê. Cortei-a simplesmente. Quanto à frase «que me sorria tão perto» – já a emendara para «que tumultuava tão perto». «Um pouco mais e brotar-me-iam asas» é que ainda estimo um pouco. Mas você está de fora, e deve ter razão. Entretanto não vejo bem o prosaísmo dela; achando interessante ainda esta maneira de exprimir um alegria infinita, um entusiasmo dourado. Você, peço-lhe de joelhos, nunca faça «cerimónias» comigo; diga-me sempre o que pensa sem medo. É isso que eu quero e d’alma lhe agradeço. É o maior serviço que me pode prestar. Se soubesse como eu estimo o seu espírito, como erguidamente o coloco... Hoje, meu querido Fernando, você é uma das pessoas que mais estimo – não que mais estimo espiritualmente – que mais estimo, dum bloco. Portanto, fale-me como a si próprio. Do «Além» já tenho outro trecho – o começo da queda – que me agrada muito mas não envio hoje por ainda não estar convenientemente desbravado e o assunto hoje abundar. Dos seus admiráveis versos falo mais longe pois tendo que dar breve um intervalo a esta carta, é preferível falar de coisas menos importantes aqui. Logo o espírito estará mais descansado.
Seguem-se umas constatações interessantes.
Pela primeira vez na minha vida tive ocasião de experimentar temperaturas muito baixas 0º a -4º. E quer saber? A sensação que tive foi de não ter frio. Mas simplesmente de o ver, de sentir dentro de mim um elemento novo que seria o frio – o Frio – mas que não me esfriava a carne. E no ar, eu via o frio – como aliás nos dias de grande calor, em Lisboa, tenho visto o calor – embora o sinta bem como calor, e não dentro de mim como «coisa» – segundo constatei com o frio.
A respeito destas «coisas» que sentem em nós devo-lhe dizer que por vezes me parece que dentro de mim falta uma coisa, uma coisa que os outros têm. E daí talvez as minhas horas descorajadas, abomináveis. Inexplicavelmente, essa coisa que me falta parece-me ser – um ponto de referência, sem propriamente saber explicar o que quero exprimir com esta frase.
Vi outra noite na Comédia Francesa o célebre Antony do Alexandre Dumas – marco do ultra-romantismo. Foi bizarra a impressão que trouxe desse espectáculo. Naquela turbamulta de tiradas grandíloquas, na «demasiada» cena final, no decantado «Esta mulher resistia-me, assassinei-a», em tudo isso que faz assomar um sorriso ao espectador d’hoje e que outrora provocava torrentes de lágrimas desde o galinheiro à orquestra – em tudo isso, de longe em longe, eu entrevi beleza – uma beleza parelha daquela que nós amamos – uma ampliação, um lançamento no infinito, no azul, na irrealidade – logo, no além – pela exageração última da realidade. E assim, um remoto elo de parentesco entre o ultra-romantismo e nós (não entre o simples romantismo e nós). Apenas nós construímos irreal, com irreal e eles só se serviam do real. Procediam do exterior. Nós vivemos no interior, no foco. Isto parece disparatado, não é verdade? Entanto eu creio não divagar. Se você assistisse à representação (a simples leitura não basta) desta obra – que hoje só vale como «história retrospectiva» do teatro, eu julgo que você me compreenderia.
Já que entramos na Comédia Francesa, sempre o levo ao Odéon para lhe contar uma ideia muito bela que encontrei numa peça dum estreante, André Fernet, intitulada La Maison Divisée e dada ao público exclusivamente literário das matinées de sábado. Trata-se do seguinte: Dois adversários combatem por dois ideais totalmente opostos. Vencedor e vencido, ei-los em frente. O vencido pode agora esmagar o vencedor; o vencedor desprezar o vencido. E pouco a pouco vêem que não têm esse direito. Eles estão muito próximos um do outro – são os que estão mais próximos. Eles lutaram com a mesma unção, o mesmo vigor, a mesma consciência. E no fundo, o objecto que perseguiam era o mesmo – o bem, a beleza – o futuro. Logo... A ideia é outra... Mas positivamente outra? Mais exteriormente apenas outra... As ideias no fundo diferem pouco... Para quê? Para quê?... E uma desolação horrível nos invade ao constatarmos que o mais próximo, o mais semelhante a nós – é o nosso adversário. Não acha isto belo – aliás pessimamente explicado por mim.
Aqui agora existe o intervalo
2 horas após, tendo jantado
Acerca dos seus versos eu tenho medo de falar. Por dois motivos estreitamente parentes. É que precisava de lhe escrever tais coisas, tais palavras que o meu amigo – à força de grandes – poderia, na sua modéstia, julgar exageradas ou então, paga dos seus elogios que eu creio muito sinceros. E isto seria horrível. Os seus versos meu querido Fernando são uma maravilha, acredite-me, creia-me, por amor de Deus faça-me a justiça de acreditar e de acreditar que os atinjo e, sobretudo, que sou sincero. «O Braço sem Corpo» é uma das coisas maiores, mais perturbadoras, extra-humanas – infinitas, ampliadas que eu conheço. É bem o que nos meus versos eu quero que o artista seja. Os dois primeiros versos das duas primeiras quadras são coisas estranhamente admiráveis mas sobretudo a última estrofe fez-me tremer num calafrio alucinador de beleza e de mistério. Eu creio que dificilmente se pode devassar em mais profundeza o desconhecido, dar melhor a ânsia, a perturbação. Coisas como essas não se apreciam, veneram-se. Devo-lhe dizer que a «Voz de Deus» me agrada muito menos e que se cabe na classificação em que o englobei com o «Braço sem Corpo» é, quanto a mim, por causa desse verso magistral: «Ó universo, eu sou-te.» As três últimas estrofes acho-as muito inferiores ao restante, mesmo levando em conta a beleza do «ser mente em ti eu sou-me». A interrogação sobre «Que é este archote, que mão tem o guia» é muito pouco, quase nada em face do resto. O resto nunca se viu. Archotes a fulgurar em mão desconhecida já há quem os tenha visto. Em resumo: genial, maravilha completa, sem uma queda é o «Braço sem Corpo»; poesia de valor com dois versos admiráveis e um genial a segunda. Em ambas as poesias você faz o que eu exprimo duramente e num verso feio quanto à forma: «Forçar os turbilhões aladamente».
Eis meu caro amigo a minha opinião sincera, completa. Só lhe rogo que as palavras que eu escrevo não o façam ser indulgente para os meus escritos. Eu tenho um medo horrível do elogio mútuo.
Ainda acerca da minha poesia lhe quero dizer o seguinte:
Eu sei que você condena a 1.ª parte e eu mesmo reprovo a maneira em que ela é talhada. Mas não podia deixar de ser assim. Com efeito o que eu sobretudo quis dar foi a antítese entre a arte real (1.ª parte) e o idealismo (2.ª). Daí propositadamente suscitei o choque. Liniariamente a minha poesia pode-se representar assim:
Isto é: Vem do real, tem uma inflexão perturbada e fugitiva para o irreal, tendo longinquamente nova inflexão para o real, impossível porém já de a atrair.
Uma nota: O meu livro (Princípio) cabe na arte que eu aconselho. Apesar do erro das digressões e da realidade da forma, explora, não infinito, mas loucura – que é um outro infinito. É «asa longínqua a sacudir loucura, nuvem precoce de subtil vapor» se não viaja outros sentidos. Aliás, ampliação completa há numa das coisas menos valorosas do livro: «Página dum Suicida». É justamente alguém que à força quer partir para o desconhecido – a morte. Esta «justificação» é uma coquetterie que você perdoará. Mas não acha que é verdade o que eu digo? Mesmo o Mário Beirão observou-me isto quando me disse as suas impressões sobre o meu volume.
Rogo encarecidamente que me responda muito breve, mesmo resumidamente, sobretudo a impressão sobre os versos. Faz-me isto, sim? É que fico ansioso pela sua opinião.
Ir para o Algarve, olhe que talvez lhe fizesse bem. Mas se for não se esqueça de mo dizer para eu saber aonde lhe dirigir as minhas cartas. O Ramos já surgiu por Lisboa?
Desculpe-me, creia na minha estima e admiração por si e pelas suas obras e conte-me no número dos seus maiores amigos.
Um grande, grande abraço.
o
Sá-Carneiro
Responda breve!!
... 50, rue des Écoles.
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SIMPLESMENTE…
Em frente dos meus olhos, ela passa
Toda negra de crepes lutuosos.
Os seus passos são leves, vigorosos;
No seu perfil há distinção, há raça.
Paris. Inverno e sol. Tarde gentil.
Crianças chilreantes deslizando…
Eu perco o meu olhar de quando em quando,
Olhando o azul, sorvendo o ar de abril.
… Agora sigo a sua silhueta
Até desapar’cer no boulevard,
E eu que não sou nem nunca fui poeta,
Estes versos começo a meditar.
Perfil perdido… Imaginariamente,
Vou conhecendo a sua vida inteira.
Sei que é honesta, sã, trabalhadeira,
E que o pai lhe morreu recentemente.
(Ah! como nesse instante a invejei,
Olhando a minha vida deplorável —
A ela, que era enérgica e prestável,
Eu, que até hoje nunca trabalhei!…)
A dor foi muito, muito grande. Entanto
Ela e a mãe souberam resistir.
Nunca devemos sucumbir ao pranto;
É preciso ter força e reagir.
Ai daqueles — os fracos — que sentindo
Perdido o seu amparo, o seu amor,
Caem por terra, escravos duma dor
Que é apenas o fim dum sonho lindo.
Elas trabalham. Têm confiança.
Se às vezes o seu pranto é mal retido,
Em breve seca, e volta-lhe a esp’rança
Com a alegria do dever cumprido.
Assim vou suscitando, em fantasia,
Uma existência calma e santa e nobre.
Toda a ventura duma vida pobre
Eu compreendo neste fim de dia:
Para um bairro longínquo e salutar,
Uma casa modesta e sossegada;
Seis divisões (a renda é limitada),
Mas que gentil salinha de jantar…
Alegre, confortável e pequena;
Móveis úteis, sensatos e garridos…
Pela janela são jardins floridos
E a serpente aquática do Sena.
Respira-se um aroma a gentileza
No jarro das flores, sobre o fogão.
Quem as dispôs em tanta devoção,
Foram dedos de noiva, com certeza.
Ai que bem-estar, ai que serenidade…
A fé robusta dispersou a dor…
Naquela vida faz calor e amor,
E tudo nela é paz, simplicidade!
*
Sinto quási desejos de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz.
Contenho-me porém. A sua luz,
Não há muitos que a saibam reflectir.
A minh’alma nostálgica de além,
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a força de evitar também.
Sei reagir. A vida, a natureza,
Que valem prò artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no azul à busca da beleza.
É subir, é subir além dos céus
Que as nossas almas só acumularam,
E prostrados rezar, em sonho, ao Deus
Que as nossas mãos d’auréola lá douraram.
É partir sem temor contra a montanha,
Cingidos de quimera e d’irreal;
Brandir a espada fulva e medieval,
A cada aurora acastelando em Espanha.
É suscitar as cor’s endoidecidas,
É ser garra imp’rial enclavinhada,
E numa extrema-unção d’alma ampliada,
Viajar outros sentidos, outras vidas.
Ser coluna de fumo, astro perdido,
Forçar os turbilhões aladamente,
Ser ramo de palmeira, água nascente,
E arco d’ouro e chama distendido…
Asa longínqua a sacudir loucura,
Nuvem precoce de subtil vapor,
Ânsia revolta de mistério e olor,
Sombra, vertigem, ascensão — Altura!
E eu dou-me todo neste fim de tarde
À espira aérea que me ascende aos cumes.
Doido d’esfinges, o horizonte arde,
Mas fico ileso entre clarões e gumes!…
Miragem roxa de nimbado encanto —
Sinto os meus olhos a volver-se em espaço!
Alastro, venço, chego e ultrapasso,
Sou labirinto, sou licorne e acanto!
Sei a Distância, compreendo o ar;
Sou chuva d’ouro e sou espasmo de luz;
Sou taça de cristal lançada ao mar,
Diadema e timbre, elmo real e cruz!…
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O bando das quimeras longe assoma...
Que apoteose imensa pelos céus!…
A cor já não é cor — é som e aroma!
Vêm-me saudades de ter sido Deus…
*
Ao triunfo maior, avante pois!
O meu destino é outro — é alto e é raro.
Unicamente custa muito caro:
A tristeza de nunca sermos dois…
Paris — fevereiro de 1913.