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Fundo
Mário de Sá-Carneiro
Cota
Esp.115/4_20
Imagem
Carta a Fernando Pessoa
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Autor
Sá-Carneiro, Mário de

Identificação

Titulo
Carta a Fernando Pessoa
Titulos atríbuidos
Carta a Fernando Pessoa
Edição / Descrição geral

Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris, a 3 de Fevereiro de 1913.

 

18

Paris – fevereiro de 1913

Dia 3

 

Meu querido amigo,

Recebi a sua carta anteontem. Não sei como agradecer-lhe. E só lhe digo que ela me causou uma grande alegria porque nos dá sempre grande prazer sabermos que temos quem nos estima e nos compreende. Obrigado.

Em primeiro lugar quero-lhe falar das suas poesias. Elas são admiráveis, já se sabe mas o que mais aprecio nelas é a sua qualidade. Eu me explico. Os seus versos são cada vez mais seus. O meu amigo vai criando uma nova linguagem, uma nova expressão poética e – veja se compreende o que eu quero significar – conseguiu uma notável força de sugerir que é a beleza máxima das suas poesias sonhadas. É muito difícil dizer o que quero exprimir: Entre os seus versos correm nuvens, e essas nuvens é que encerram a beleza máxima. Dos versos que me escreve na sua carta os que eu coloco mais alto por serem aqueles aonde mais frisantemente isto se observa, são os tercetos de «O manibus date lilia ple- nis...» e – sobretudo – as sextilhas do «Abismo». Esta poesia é quanto a mim uma coisa sublime. De tudo o que conheço seu talvez a que mais fico estimando. Toda ela é uma orquestração de bruma – o poeta manuseia o mistério, interroga o além. E que coisa maravilhosa a 2.ª estrofe!... Como é bem descrito o estado da alma que interroga: «O que é ser-se rio e correr? O que é está-lo eu a ver?» E neste verso: «Tudo de repente é oco», passou uma asa de génio. Sabe bem que não estou a «elogiar», que estou apenas a dizer sinceramente o que penso da sua obra. Peço que me acredite e que acredite também nisto: Que eu compreendo os seus versos.

Quantas vezes em frente dum espelho – e isto já em criança – eu não perguntava olhando a minha imagem: «Mas o que é ser-se eu; o que sou eu». E sempre, nestas ocasiões, de súbito me desconheci, não acreditando que eu fosse eu, tendo a sensação de sair de mim próprio. Concebe isto?

O soneto composto numa fuga ao raio é muito belo também. Gosto menos do «Dobre» e pouco do «Fio d’Água». «Uma melodia» é outra coisa soberba. E eu compreendo muito bem o horror da sua tortura que nela descreve.

O que é preciso, meu querido Fernando, é reunir, concluir os seus versos e publicá-los não perdendo energias em longos artigos de crítica nem tão-pouco escrevendo fragmentos admiráveis de obras admiráveis mas nunca terminadas. É preciso que se conheça o poeta Fernando Pessoa, o artista Fernando Pessoa – e não o crítico só – por lúcido e brilhante que ele seja. Atenda bem nas minhas palavras. Eu reputo mesmo um perigo para o seu triunfo a sua demora em aparecer como poeta. Habituado a ser considerado como o belo crítico os «outros» terão estúpida mas instintivamente repugnância em o aceitar como poeta. E você pode encontrar-se o crítico-poeta e não o poeta-crítico. Por isso, embora, em princípio, eu concorde com a sua resolução de não publicar versos senão em livro, achava preferível – se não vê possibilidade de o fazer sair num espaço breve – a inserção de algumas das suas poesias (ainda que poucas) na Águia. Seria «pour prendre date» como poeta.

Mas isto não são conselhos sequer. Não tenho essa petulância. É apenas o que eu faria no seu caso. Perdoe-me mesmo ter-lhe dito isto. Seja em paga da ofensa que você me fez pedindo desculpa por me dar a sua opinião sobre um ponto em que eu não o consultava directamente. Concordo com tudo quanto você me diz acerca de títulos e dedicatória etc. A dedicatória não é mesmo preciso que exista. O título «Asas» conservá-lo-ei provavelmente. E para «O Homem do Ar» adoptarei com certeza «O Ar», que você sugere ou unicamente «Ar». Diga o que pensa.

As recomendações que faz acerca da «materialização» são perfeitamente justas. E eu terei o máximo cuidado de não cair nesse escolho.

Junto, vão umas linhas que tenho escrito ultimamente Elas não se aparentam em coisa alguma com o que até hoje tenho composto. São coisas que me têm surgido bizarramente, não sei bem como. Serão do «Além». São ainda frases soltas, não certas. Peço que as medite bem, profunda, demoradamente, palavra a palavra e que me diga com a máxima sinceridade o que pensa delas. Presta-me assim o maior dos serviços. E eu creio que não me negará este favor. Mas sinceridade absoluta. Elas aí vão (considere-as apenas como excertos ainda não polidos).

1.º fragmento

Erravam pelo ar naquela tarde loira eflúvios roxos d’alma e ânsias de não ser.

Mãos santas de rainha, loucas de esmeraldas, davam aroma e rocio à brisa do crepúsculo.

O ar naquela tarde era beleza e paz; o ar naqueIa tarde era saudade e além...

........................................................................... E asas duma quimera, longinquamente batendo, a ungi-lo de irreal... ........................................................................... Lufadas de folhas mortas, todas cheirosas a sombra... ........................................................................... Um ar que sabia a luz e que rangia a cristal... ........................................................................... E muito ao longe... muito ao longe... as casas brancas...

***

Na grande alcova da vitória, toda nua e toda ruiva, eu tinha-a final- mente estiraçada sobre o leito fantástico da cor.

Linda espiral de carne agreste, a mais formosa enchia para mim os olhos de mistério sabendo que eu amava as ondas de estranheza.

E os seus braços, de nervosos, eram corças...
E os seus lábios, de rubros, eram dor... ........................................................................... No jardim os girassóis não olhavam para o sol... ........................................................................... Verguei-me todo para ela...
A hora esmaeceu...
O ar tornou-se mais irreal...
Houve um cortejo de estrelas... ........................................................................... Em face daquela glória que me sorria tão perto, que me ia sagrar enfim – os meus olhos eram chama e a minh’alma um disco d’ouro...

Até aqui isto é na sua essência o começo dum todo. Agora é que escreverei apenas frases soltas. Mas primeiro deixe-me dizer-lhe o meu plano: A beleza vai-se agora desfazer da forma que verá. Morta a beleza, sobrevém o abatimento. Mas o poeta quer-se ainda enganar:

«A tristeza das coisas que não foram, descera-me na alma. Eu era agora uma esfinge sem mistério – e os raios dourados do meu olhar, apenas reflexos de ouro falso.»

Mas juntando toda a sua sede de beleza e de ideal consegue ainda ascender num espasmo de azul.

Mas de novo a desilusão. E é aqui que se dará a queda, através do espaço que será a «viagem» a que eu me referia na minha última carta.

No final de cada capítulo, de cada «cristalização» haverá sempre frases como estas:

«E ao longe sempre as casas brancas.»
«As casas brancas não perdoam.»
Com esta imagem quero eu significar a impossibilidade da evasão completa no «Além» porque ao longe se vê sempre a fita monótona e bem real e bem sólida da casaria branca – seja o ar misterioso, carregado de cor e de irrealidade, seja a beleza morta, seja a beleza resplandecente.

Isto vai emaranhadíssimo. Mas você compreende: Eu vou desenrolando ideias que no meu cérebro ainda estão emaranhadas e por isso não poderia ser lúcido. Faça no entanto um esforço por perceber neste caos.

E prosseguindo agora: ........................................................................... Um pouco mais e brotar-me-iam asas... ........................................................................... A louca acerava as pontas dos seios para os tornar mais acres, p’ra me ferir melhor.

E os meus lábios d’ânsia sofriam já da saudade dos beijos que lhe iam dar. ...........................................................................

Agora deixe-me expor-lhe como a beleza se desfaz: A beleza à força de grandiosa volve em espaço os olhos do poeta. Este compreende o espaço, vê-o. E então detém-se aterrado diante «da cavalgada medonha dos ângulos agudos que se lança em tropel sobre o seu³ corpo ideal a materializá-lo escarninhamente, zombando das curvas e dos redemoinhos». Depois «uma gaiola picaresca de losangos» põe-se a girar vertigi- nosamente em volta do seu corpo. No ar haverá «palmas de espadas, derrocadas de gomos, ondulações pavorosas de sons húmidos». E em face disto toda a beleza cairá em estilhaços. Você compreende que tudo isto é muito estranho. No entanto eu sinto-o. E diga-me: Não seria horrível ver a girar em volta dum corpo lindo e nu uma gaiola de losangos de ar, tão graciosos e bojudos? E os ângulos agudos saltando sobre essa carne? Já num verso diz Cesário que odeia «os ácidos, os gumes e os ângulos agudos». Espadas batendo palmas acho que dão um som esbatido, especial e frio pelo ar que põem em movimento. Derrocadas de gomos tem para mim um «som-mudo» e argentino e uma coisa horrível – os «sons húmidos». No que escrevo há frases de que gosto deveras: «Os meus lábios de ânsia sofriam já da saudade dos beijos que lhe iam dar.» É à ideia da saudade antes da posse que eu acho qualquer coisa de trágico e grande – «ter saudade já do futuro». «A minha alma era um disco de ouro» agrada-me também pois me dá bem a impressão duma grande alegria e entusiasmo. Gosto da nota dos girassóis e depois da expressão «verguei-me» que estabelece uma ligação indefinida entre as duas frases porque é das flores que se diz que elas «se vergam». Compreende?

³ O corpo da amante nua.

Enfim, atenda nisto tudo e com a maior brevidade diga-me sinceramente o que pensa do que lhe exponho. Com a maior brevidade porque eu fico ansioso de saber a sua opinião.

E muitas desculpas por esta enorme estopada! e borrada!...

Você tem muita razão no que diz acerca da influência perniciosa que o Vila-Moura pode ter sobre o Mário Beirão. Gosto pouco do título do livro que acho um pouco «doce» de mais.

Impagável o espanhol do Ramos!

O Santa-Rita apresentou-me hoje a um escultor Henrique Franco, pensionista do Estado. Julgo que você o conhece.

Perdoe esta carta tão extensa e os meus pedidos. Mas satisfaça-mos, sim? Resposta sincera e o mais breve possível.

Um grande abraço do seu muito amigo e agradecido

M. de Sá-Carneiro

 

Perdoe a caligrafia horrenda!

Só a sua muita bondade perdoará a infâmia destes borrões mas a pena e tinta com que escrevo são horríveis.

Bem sabe que não há aqui menos consideração.

 

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5258

Classificação

Categoria
Espólio Documental
Subcategoria
Correspondência

Dados Físicos

Descrição Material
Tinta preta sobre 10 folhas lisas e timbradas (Café Riche, Paris) e sobrescrito.
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
1913 Fev 3
Notas à data
Inscrita.
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Fernando Pessoa
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Bom
Proprietário
Biblioteca Nacional de Portugal
Historial

Palavras chave

Locais
Paris
Palavras chave
Nomes relacionados
Cesário Verde
Henrique Franco
Mário Beirão
Santa-Rita

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Exposições
Itens relacionados
Esp.115/4
Bloco de notas
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.