Arquivo virtual da Geração de Orpheu

Mário de Sá-Carneiro

O Arquivo Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), poeta modernista, inclui correspondência, cadernos e manuscritos, bem como a obra publicada no seu tempo de vida. Muitos destes documentos foram reunidos por François Castex, professor e escritor francês, e encontram-se conservados na Biblioteca Nacional de Portugal. Reúne-se aqui também o conjunto das cartas enviadas pelo autor ao seu amigo Fernando Pessoa.

Os documentos completos encontram-se no campo “PDF” e os manuscritos foram transcritos no campo “Edição”. 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/4_10
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Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris, a 2 de Dezembro de 1912.

 

8

Paris – Dezembro de 1912

Dia 2

 

Meu querido amigo,

Recebi ontem a sua carta de 28 que muito e muito agradeço. Como sempre sucede com a sua correspondência foram alguns deliciosos instantes espirituais que lhe fiquei devendo.

E depois a sua carta confortou-me. Porque a sua carta define maravilhosamente aquilo que eu sinto. É o médico expondo ao cliente toda a engrenagem minuciosa da sua enfermidade. E como nos conforta sempre sabermo-nos compreendidos, a sua carta me confortou. Feriu sobretudo o meu amigo notas que eu nunca esquecerei. E esta especialmente: «a família, para essa doença, não é o antídoto, mas a cama.» Como isto é bem verdade, como tantas vezes, sem o exprimir, o tenho sentido!... Que eu por mim, no «seio da família» foi seio aonde nunca me agitei...

No entanto, ultimamente, vou passando um pouco melhor, muito pouco aliás. Porquê? Sem motivos, como sem motivos as crises se agravam. São talvez influências subconscientes, e a atmosfera, o perfume do ar, a cor do céu, as pessoas que em redor de nós circulam – têm talvez império sobre o nosso estado. Assim, eu ontem, sem motivo, passei um dia razoável. Havia pouco sol e muito frio. Vagueei solitário pelo meio-dia nos boulevards. E como fosse domingo e eles corressem vazios de gente, o cenário foi-me grato; o ar cheirava bem – senti-me confortado.

No «desaparecer» da minha carta havia, é certo, um revólver apontado aos ouvidos; mas havia também outra coisa. É que eu, quando busco, acho duas formas de desaparecer: uma fácil e brutal – a água profunda, o estampido de uma pistola – outra suave e difícil: o sufocamento de todos os ideais, de todas as ânsias – o despojo de tudo quanto de belo, de precioso existe em nós. Ah! quantas vezes eu tenho um desejo violento de conseguir este «desaparecimento»! Mas como? Como?... E a dor, a raiva concentrada, despedaçadora e uivante que se me enca- pelaria em todo o ser, na hora do triunfo!...

E o outro desaparecimento é horrível, e ambos eles são egoístas – torpe um, cobarde o outro.

Depois, coisa interessante, quando eu medito horas no suicídio, o que trago disso é um doloroso pesar de ter de morrer forçosamente um dia mesmo que não me suicide. (Aliás eu tenho a certeza que esse não será o meu fim. Como digo no «Incesto»: «Os meus amigos podem estar perfeitamente sossegados.»)

Mas não falemos mais destas «complicações doentias». (Nos bons tempos de 80, quando Bourget florescia, nos rapazes de 20 anos o que se estudava eram as «complicações sentimentais» – quer dizer, «amorosas». A nossa geração é mais complicada, creio, e mais infeliz. A iluminar as suas complicações não existe mesmo uma boca de mulher. Porque somos uma geração superior.)

Quanto a novas ideias, interessantes têm surgido raríssimas. Falo-lhe apenas duma – que não sei mesmo se já narrei ao meu amigo. É a seguinte: Contar a tragédia do ar, as dores e as alegrias do ar – o ar como ser, como indivíduo. E falar-se-ia dos comboios gigantescos que o rompem brutalmente, e das mãos brancas que o acariciam, de todos os deslocamentos, em suma, que no oceano aéreo se dão. É esta uma ideia longínqua muito difícil de explicar em poucas palavras. Mas creio que o meu amigo a compreenderá. Diga-me o que pensa dela. Eu pela minha parte, por enquanto pelo menos, não lhe dou grande importância.

Outras coisas episódicas me têm surgido mas sem valor. Duma só lhe falo, que incluirei no «Gentil Amor». São pensamentos em face dum carroussel do Jardim do Luxemburgo onde crianças giram batendo as palmas, doidas de alegria, cavalgando leões, camelos, elefantes, coelhos, formigas, todos iguais no tamanho, estes animalejos. E dir-se-á: são aqueles os futuros corredores de ideal, mas ai, na infância eles cavalgam facilmente, corajosos, despreocupados e sorridentes elefantes e coelhos, hienas e formigas. Cavalgam o que querem – para eles, existe o que querem... Mas depois, na vida quanto sangue não verterão os seus membros para enfim poderem correr livremente, triunfantes no dorso áureo dum leão selvagem... Nesse carroussel ver-se-á a «miniatura do ideal». É também difícil de exprimir isto e eu disse-lho mesmo muito mal e incompletamente. Você desculpará.

Só ontem recebi os n.os da Águia 10 e 11. Entusiasmaram-me os versos do Mário Beirão, quer o soneto «Ausente», quer a poesia «Cintra». Diga-me você o que pensa acerca destas duas produções. Na «Cintra» acho belo de plasticidade o começo, a evocação da Pena; soberbo de entusiasmo a última parte. E pensamentos como estes: «Vou ausente de mim por mim andar» são na verdade coisas grandes. Sabe? Achei o soneto «Ausente» e certos versos da «Cintra» «à maneira de Fernando Pessoa». Por exemplo o verso atrás citado. Li o seu artigo. Esplêndido de clareza, de justeza, de inteligência. Apenas lastimo que para o público você seja por enquanto apenas o «crítico Fernando Pessoa» e não o Artista.

Havia mais coisas a dizer-lhe. Falar-lhe do Santa-Rita etc. Mas para a próxima carta ficará, rogando-lhe eu que mo escreva amiudadas vezes, e largamente, como até hoje tem feito.

Abraça-o o seu muito sincero amigo o admirador
Mário de Sá-Carneiro

50, rue des Écoles

 

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5191
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre 4 folhas lisas e timbradas (Café Restaurant Cardinal, Paris) e sobrescrito.
Dados de produção
1912 Dez 2
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Santa-Rita
Mário Beirão
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115/4
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.