Identificação
Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris, a 16 de Novembro de 1912.
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Paris 16 novembro 1912
Meu caro amigo
Com péssima disposição de espírito e num dia chuvoso, enervado, escuro como breu venho responder-lhe à sua longa carta. Começo por lhe pedir perdão de em troca lhe enviar poucas linhas – «poucas e mal alinhavadas linhas», lugar-comum que, neste caso, exprime bem a verdade.
Não tenho de forma alguma passado feliz nesta terra ideal. Tenho mesmo vivido ultimamente alguns dos dias piores da minha vida. Porquê? indagará você. Por coisa alguma – é a minha resposta. Ou antes: por mil pequeninas coisas que somam um total horrível e desolador. Olho para trás, e os tempos a que eu chamei desventurados, afiguram-se-me hoje áureos, suaves e benéficos. Diante de mim, a estrada vai pouco a pouco estreitando-se, emaranhando-se, perdendo o arvoredo frondoso que a abrigava do sol e do vento. E eu cada vez mais me convenço de que não saberei resistir ao temporal desfeito – à vida, em suma, onde nunca terei um lugar.
Vê você, eu sofro porque sinto próxima a hora em que o recreio vai acabar, em que é forçoso entrar para as aulas. Talvez não me compreenda nestas palavras, mas eu não tenho paciência nem força para lhe falar mais detalhadamente: Em suma não creio em mim, nem no meu curso, nem no meu futuro. Já tomei várias decisões desde que aqui estou e um dia senti, na verdade senti cheio de orgulho, que me chegara finalmente a força necessária para desaparecer. Ilusão dourada! Na manhã seguinte essa força remediável tinha desaparecido. E então resolvi voltar para Lisboa, sepultar dentro de mim ambições e orgulhos. Mas não tive também força para o fazer. Sorria-me Paris e lá ao longe, um fiozinho de esperança que todas as aspirações dentro de mim me fizeram ver como um facho resplandecente. Desembriagado, hoje porém observo desolado quanto esse fio é ténue. Mais uma vez fui fraco, em resumo – adiei, e sempre boiando cá vou vivendo.
Depois, no meio da minha angústia, pequeninas coisas se precipitam a exacerbá-la: A saudade de todas as coisas que vivi, as pessoas desaparecidas que estimei e foram carinhosas para mim. Mas não é isto só: sofro pelos golpes que tenho a certeza hei-de vir a sofrer, como por exemplo a morte fatal e próxima de algumas pessoas que estimo profundamente e são idosas. E sofro ainda também, meu querido amigo, por coisas mais estranhas e requintadas – pelas coisas que não foram. De forma que numa tortura constante tenho vivido estes últimos dias e cheguei mesmo a chorar uma noite – o que há tanto, desde os 15 anos, não me acontecia.
Depois o que há de mais doloroso nisto tudo é que os outros não podem compreender a minha infelicidade porque, em suma, eu outro dia estabeleci o seguinte quadro
Estou em Paris
Tenho saúde
Tenho dinheiro
Posso fazer o que quiser
Não tenho preocupações
Não tenho desgostos
Estou aborrecidíssimo
Sinto-me infeliz em extremo
Vivo numa tortura constante
Sofro muito
A minha desolação é ilimitada
É isto uma puerilidade, bem sei, mas outro dia escrevi a sério este quadro num papel e, perante ele, é que justamente eu pude bem medir a minha desventura.
Não o quero maçar mais com os meus queixumes. Perdoe-mos e acredite-me – é só o que lhe peço.
Li os inquéritos do República que fez o favor de me mandar. Achei na verdade interessantíssima a exposição do tenente e um amontoado de disparates a prosa do tipógrafo católico. O próprio Santa-Rita que ao princípio começou entusiasmado por o homem se mostrar talassa e beato, concordou neste ponto. Sobre o Santa-Rita tenho a fazer uma pequena rectificação. O quadro não é o «Silêncio num quarto sem móveis», mas o «Ruído num quarto sem móveis». Tenho continuado a andar com ele, mas vou procurar afastar-me porque se vai tornando cada vez mais intolerável em pequeninas coisas que só de boca se podem esmiuçar. Rogo-lhe porém que não aluda a isto que eu aqui lhe digo. É vaidoso insuportavelmente, calcando a gente com a sua pretendida superioridade – chegando a ofender e a ferir. Depois tem coisas como estas: Num café apresenta-me a um conhecido como «operário futurista». Ele diz-se pintor futurista e conta ao seu interlocutor que os futuristas não pintam, que quem faz os quadros são operários como eu!!! Outra vez apresenta-me a uma polaca horrivelmente feia e diz-lhe que eu sou homossexualista! A polaca replica que simpatiza muito com os degenerados!! Finalmente, ontem à noite, às 11 1/2, aparece-me no quarto, quando eu já estava deitado, com um patusco francês cujo nome ele ignora, e pespega-lhe que eu sou um jesuíta português emigrado político!!!!... No entanto, continuo a dizer que nos seus períodos normais é um espírito interessante.
Por hoje vou terminar, embora o meu desejo fosse escrever-lhe um caderno de papel. Mas é-me impossível completamente.
Rogo-lhe de novo perdão e peço-lhe que me escreva o mais breve possível, respondendo a esta carta (isto é, fazendo comentários sobre o que nela digo) e dando notícias interessantes.
Grande abraço
do seu verdadeiro amigo muito obrigado
Mário de Sá-Carneiro
P. S. – A sua poesia é belíssima – embora não superior a outras produções suas. Gosto imenso da primeira e da última quadra. Mande mais versos que tenha feito.
o Sá-C.