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Fundo
Mário de Sá-Carneiro
Cota
Esp.115/4_8
Imagem
Carta a Fernando Pessoa
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Autor
Sá-Carneiro, Mário de

Identificação

Titulo
Carta a Fernando Pessoa
Titulos atríbuidos
Carta a Fernando Pessoa
Edição / Descrição geral

Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris, a 16 de Novembro de 1912.

 

 
 

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Paris 16 novembro 1912

Meu caro amigo

Com péssima disposição de espírito e num dia chuvoso, enervado, escuro como breu venho responder-lhe à sua longa carta. Começo por lhe pedir perdão de em troca lhe enviar poucas linhas – «poucas e mal alinhavadas linhas», lugar-comum que, neste caso, exprime bem a verdade.

Não tenho de forma alguma passado feliz nesta terra ideal. Tenho mesmo vivido ultimamente alguns dos dias piores da minha vida. Porquê? indagará você. Por coisa alguma – é a minha resposta. Ou antes: por mil pequeninas coisas que somam um total horrível e desolador. Olho para trás, e os tempos a que eu chamei desventurados, afiguram-se-me hoje áureos, suaves e benéficos. Diante de mim, a estrada vai pouco a pouco estreitando-se, emaranhando-se, perdendo o arvoredo frondoso que a abrigava do sol e do vento. E eu cada vez mais me convenço de que não saberei resistir ao temporal desfeito – à vida, em suma, onde nunca terei um lugar.

Vê você, eu sofro porque sinto próxima a hora em que o recreio vai acabar, em que é forçoso entrar para as aulas. Talvez não me compreenda nestas palavras, mas eu não tenho paciência nem força para lhe falar mais detalhadamente: Em suma não creio em mim, nem no meu curso, nem no meu futuro. Já tomei várias decisões desde que aqui estou e um dia senti, na verdade senti cheio de orgulho, que me chegara finalmente a força necessária para desaparecer. Ilusão dourada! Na manhã seguinte essa força remediável tinha desaparecido. E então resolvi voltar para Lisboa, sepultar dentro de mim ambições e orgulhos. Mas não tive também força para o fazer. Sorria-me Paris e lá ao longe, um fiozinho de esperança que todas as aspirações dentro de mim me fizeram ver como um facho resplandecente. Desembriagado, hoje porém observo desolado quanto esse fio é ténue. Mais uma vez fui fraco, em resumo – adiei, e sempre boiando cá vou vivendo.

Depois, no meio da minha angústia, pequeninas coisas se precipitam a exacerbá-la: A saudade de todas as coisas que vivi, as pessoas desaparecidas que estimei e foram carinhosas para mim. Mas não é isto só: sofro pelos golpes que tenho a certeza hei-de vir a sofrer, como por exemplo a morte fatal e próxima de algumas pessoas que estimo profundamente e são idosas. E sofro ainda também, meu querido amigo, por coisas mais estranhas e requintadas – pelas coisas que não foram. De forma que numa tortura constante tenho vivido estes últimos dias e cheguei mesmo a chorar uma noite – o que há tanto, desde os 15 anos, não me acontecia.

Depois o que há de mais doloroso nisto tudo é que os outros não podem compreender a minha infelicidade porque, em suma, eu outro dia estabeleci o seguinte quadro

Estou em Paris
Tenho saúde
Tenho dinheiro
Posso fazer o que quiser

Não tenho preocupações

Não tenho desgostos

Estou aborrecidíssimo

Sinto-me infeliz em extremo

Vivo numa tortura constante

Sofro muito
A minha desolação é ilimitada

 

É isto uma puerilidade, bem sei, mas outro dia escrevi a sério este quadro num papel e, perante ele, é que justamente eu pude bem medir a minha desventura.

Não o quero maçar mais com os meus queixumes. Perdoe-mos e acredite-me – é só o que lhe peço.

Li os inquéritos do República que fez o favor de me mandar. Achei na verdade interessantíssima a exposição do tenente e um amontoado de disparates a prosa do tipógrafo católico. O próprio Santa-Rita que ao princípio começou entusiasmado por o homem se mostrar talassa e beato, concordou neste ponto. Sobre o Santa-Rita tenho a fazer uma pequena rectificação. O quadro não é o «Silêncio num quarto sem móveis», mas o «Ruído num quarto sem móveis». Tenho continuado a andar com ele, mas vou procurar afastar-me porque se vai tornando cada vez mais intolerável em pequeninas coisas que só de boca se podem esmiuçar. Rogo-lhe porém que não aluda a isto que eu aqui lhe digo. É vaidoso insuportavelmente, calcando a gente com a sua pretendida superioridade – chegando a ofender e a ferir. Depois tem coisas como estas: Num café apresenta-me a um conhecido como «operário futurista». Ele diz-se pintor futurista e conta ao seu interlocutor que os futuristas não pintam, que quem faz os quadros são operários como eu!!! Outra vez apresenta-me a uma polaca horrivelmente feia e diz-lhe que eu sou homossexualista! A polaca replica que simpatiza muito com os degenerados!! Finalmente, ontem à noite, às 11 1/2, aparece-me no quarto, quando eu já estava deitado, com um patusco francês cujo nome ele ignora, e pespega-lhe que eu sou um jesuíta português emigrado político!!!!... No entanto, continuo a dizer que nos seus períodos normais é um espírito interessante.

Por hoje vou terminar, embora o meu desejo fosse escrever-lhe um caderno de papel. Mas é-me impossível completamente.

Rogo-lhe de novo perdão e peço-lhe que me escreva o mais breve possível, respondendo a esta carta (isto é, fazendo comentários sobre o que nela digo) e dando notícias interessantes.

Grande abraço
do seu verdadeiro amigo muito obrigado

Mário de Sá-Carneiro

P. S. – A sua poesia é belíssima – embora não superior a outras produções suas. Gosto imenso da primeira e da última quadra. Mande mais versos que tenha feito.

o Sá-C.

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5189

Classificação

Categoria
Espólio Documental
Subcategoria
Correspondência

Dados Físicos

Descrição Material
Tinta preta sobre 3 folhas lisas e sobrescrito.
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
1912 Nov 16
Notas à data
Inscrita.
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Fernando Pessoa
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Bom
Proprietário
Biblioteca Nacional de Portugal
Historial

Palavras chave

Locais
Paris
Palavras chave
Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Exposições
Itens relacionados
Esp.115/4
Bloco de notas
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.