Tenho andado muito com o Guilherme de Santa-Rita.
É um tipo fantástico, não deixando no entanto de ser interessante. Imagine você que a uma mesa do Bullier, em frente duma laranjada e
tendo por horizonte o turbilhão dos pares dançando uma valsa austríaca – de súbito, a propósito já não sei de quê, me desfechou esta:
– ... porque eu, sabe você, meu caro Sá-Carneiro, não sou filho da minha mãe...
Julguei estar sonhando, mas ele continuou:
– O meu pai, querendo dar-me uma educação máscula e rude, mandou-me para fora de casa quando era muito pequeno. Fui para uma ama cujo marido era oleiro. Essa ama tinha um filho. Uma das crianças morreu. Ele disse que fora o seu filho. Entretanto, a instância de minha mãe e devido a eu ter ido com uma companhia de saltimbancos, tendo sido encontrado em Badajoz (eis os saltimbancos do Jaime Cortesão, coisa que aliás ele me confessara ser blague) voltei para casa dos meus pais. Em 1906 porém a minha ama morreu e deixou uma carta para minha mãe em que lhe confessava que quem morreu fora o filho dela. Logo eu não era o filho da minha mãe mas sim da minha ama. É este o lamentável segredo, a tragédia da minha vida. Sou um intruso. Ah! mas hei-de dar uma satisfação à sociedade! É por isso que eu quero ser alguma coisa nesta vida! E abençoo a minha verdadeira mãe que, para eu ser mais feliz, não teve hesitação em perder-me, em dar-me a outra mãe! Eu quando escrevo ao Augusto assino sempre, humildemente Guilherme Pobre. E foi por isto que, quando estive em Lisboa, não quis ir para minha casa, fiquei num hotel. (Diga-me você, Pessoa, se isto é verdade.)
Depois desta longa tirada que me deixou boquiaberto, eu sorri e comentei «que era muito interessante... um verdadeiro romance folhetim...». Saímos. E cá fora, ainda falando no caso, ele ria nervosamente, sinistramente, encostando-se a mim...
Que diz você a isto, Fernando? Peço-lhe que faça comentários e que, em todo o caso, não divulgue a história, pois ele me pediu o máximo segredo... É espantoso! E de mais nessa mesma noite ele jurara-me que se deixara por completo de blagues.