Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris.
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Paris
– Maio de 1913 Dia 4
Meu querido Fernando,
Aí vai outra poesia. Fi-la, vamos lá em 3 horas, neste café, com barulho e um militar reformado, gagá, ao meu lado que fala só e implica com os circunstantes... Nesta tenho muita confiança; julgo-a mesmo muito bela, pasmo de a ter feito. É muito interessante o que se passa comigo actualmente. Como é que de súbito eu me virgulo para outra arte tão diferente? E sem esforço, antes naturalmente. Depois há isto. Eu que sou sempre inteligência, que componho sempre de fora para dentro, pela primeira vez acho-me a compor de dentro para fora. Estes versos, antes de os sentir, pressinto-os, pesam-me dentro de mim; o trabalho é só de os arrancar dentre o meu espírito. Sinto mesmo uma ou duas poesias mais dentro de mim. Não lhe posso dizer o que elas são; mas sinto-as. Qualquer dia as escreverei. É preciso notar que o soneto que ontem lhe enviei, bem como esta poesia e essa outra ou outras ainda não escritas se englobam em Dispersão, e entrevejo mesmo uma plaquette aonde, sob esse título, elas se reúnam sem títulos; separadas unicamente por números. É preciso notar que só farei essa publicação se o meu amigo me disser que efectivamente estes versos valem alguma coisa, não muita coisa – entanto alguma coisa. Mesmo eu gostava muito de publicar um feixe de versos entre as minhas prosas. Diga-me pois francamente. O «Bailado» aboli-o. Logo não se admire do «Desce- -me a alma», que aproveitei na «Bebedeira», como outras coisas do «Bailado» aproveitarei. Aliás o verso «Desce-me a alma, sangram-me os sentidos» parece-me muito belo. Que diz você? É verdade. Resolvi substituir toda a 1.a parte do «Simplesmente» por esta única quadra
Ao ver passar a vida mansamente
Nas suas cores serenas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.
Faço bem? Diga.
Quanto às elisões («imp’rial», etc.) quando publicar os versos não as faço tipograficamente. O leitor maquinalmente as fará. O mesmo sucede com um «crepúsculo» da «Bebedeira».
Diga-me também. Seria melhor escrever a 1.a quadra do soneto de ontem assim (foi como primeiro a escrevi)?
Numa ânsia de ter alguma coisa,
Divago por mim mesmo a procurar.
Desço-me todo, e em vão... Sem nada achar,
A minh’alma perdida não repousa.
Na «Bebedeira» será melhor «Um disco d’ouro nasce a voltear» do que: «Um disco d’ouro surge a voltear»?
Desculpe todas estas coisas sem importância. É claro mesmo que pequenos retoques ainda presumivelmente darei a todos estes versos até à hora da sua publicação.
Suplico-lhe, suplico-lhe que me diga o mais depressa possível o valor destes versos. Com toda a rudeza. Pode-os mostrar a quem entender.
E perdão de novo pelas minhas maçadas!
O seu muito grato
Sá-Carneiro
Responda logo que possa!
Perdoe-me! ...
Destas 4 poesias: 2.a parte do «Simplesmente», «Dispersão», Soneto e «Bebedeira», diga-me qual a melhor (eu julgo a última).