Virtual Archive of the Orpheu Generation

Mário de Sá-Carneiro

The Virtual Archive of Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), modernist poet, includes his correspondence, notebooks, manuscripts and published work during his lifetime. Most of these documents were gathered by François Castex, French intellectual, and are kept at the National Library of Portugal. Also included here are letters sent by the author to his great friend Fernando Pessoa, kept in the E3 collection of the National Library.

The full documents can be found in the 'PDF' box and the manuscripts have been transcribed in the 'Edition' box. 

 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/7_20
Esp.115/7_20
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Paris, no dia 4 de Abril de 1916. 

 

 **

Paris – Abril 1916

Dia 4

Meu Querido Amigo,

 

Neste enredo formidável de coisas trágicas e até picarescas não sei desenvencilhar-me para lhe fixar certos detalhes. Olhe, guinchos e cambalhotas sempre – e sempre, afinal, a Estrela de encontrar pessoas que estão para me aturar. O milagre não se produziu, pois não se podia produzir – o meu Pai não tendo recebido o telegrama como já sei. Assim ontem de manhã deixei tranquilamente a personagem feminina destes sarilhos a dormir, bem certa de que pelo meio-dia regressaria a sua casa com mil francos... Saí para escrever um pneumático longíssimo onde contava tudo e anunciava o meu suicídio às 2 1/2 na estação de Pigalle (Nord-Sud). E que lhe deixaria o meu «stylo» na caixa de certo café, como última recordação. Efectivamente preparei tudo para a minha «morte». Escrevi-lhe uma última carta a você, outra a meu Pai – e a ela outro pneumático... Depois fui para deixar a caneta... E dizem-me que M.lle fulana muito aflita andava à minha procura... (de resto eu dera-lhe rendez-vous antes de «morrer» às 2 horas noutro café)... Ando mais, e de todos os cafés entre a Place Pigalle e a Place Blanche me chamam... Resolvi então – embora já tivesse comprado o bilhete – esperar até encontrá-la... De modo que quando a pobre rapariga mais uma vez aflitíssima me procurava encontra-me... a tomar um boc e a consultar o Botin num café... Eram 4 horas... Contou-me então que destacara a irmã para a estação do Norte-Sul, e que fora ao consulado português entretanto, donde voltava... Agora aqui aparece, quando menos se espera, quem? O Orfeu – meu amigo – o Orfeu!... Os cônsules receberam-na risonhamente... que não fizesse caso... que sabiam muito bem quem eu era... que certa revista de doidos da qual eu fora chefe etc.... e que era um detraqué, dum grupo de tarados, embrutecidos pela cocaína e outras drogas (sic)... hein, há-de concordar que isto é de primeira ordem! Enfim... Ficou muito contente por me encontrar – descompôs-me claro e foi arranjar dinheiro visto que eu o não tinha... Antes disso fiz outra cena: quis partir um copo, eu, na minha cara. Ela agarrou-me a tempo a mão. Não obstante rachei um beiço... Uma beleza como você vê... Arranjou-me também dinheiro para mandar novo telegrama ao meu Pai – e em suma até receber a resposta será ela que – não sei como: isto é: demais o sei... – me arranjará o dinheiro. Veja você que coisa tão contrária à minha «sorte», à minha psicologia... Agora já não é blague se se disser que eu vivi à custa duma mulher... Lindo hein? Um encanto... O termo de tudo isto: Mistério... Talvez mesmo ainda o metro... Mas não faça caso... Ui, que praga! Perdoe todos os sustos por que o fiz passar (Venho de resto de enviar-lhe um telegrama a sossegá-lo). Imagine que a rapariga teve que arranjar 60 francos que gastámos em dois dias num restaurante e café pois na 2.a-feira eu garantira arranjar dinheiro... (não olhara a despesas porque me mataria). Há-de concordar que tenho sorte em topar sempre com criaturas que não me mandam passear – e que no fundo gostam de mim pela minha Zoina... Porque a verdade é esta: é a única coisa que me torna interessante. Você não acha? Soube que o meu Pai não recebera o telegrama pois aflitíssimo pedia notícias minhas à legação... Mas esta não telegrafou a resposta... pois não há verba para tais imprevistos. Você escreva. Ria-se: mas no fundo tenha muita pena – muita do seu, seu

 
 

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ESCREVA

Mário de Sá-Carneiro 

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5847
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre folhas quadriculadas e sobrescrito.
Dados de produção
1916 Abr 4
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.