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Fundo
Mário de Sá-Carneiro
Cota
Esp.115/5_22
Imagem
Carta a Fernando Pessoa
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Autor
Sá-Carneiro, Mário de

Identificação

Titulo
Carta a Fernando Pessoa
Titulos atríbuidos
Carta a Fernando Pessoa
Edição / Descrição geral

Carta enviada de Paris, no dia 6 de Agosto de 1914. 

 

 **

Paris 6 agosto 1914

Meu Querido Amigo,

Estou muito triste. Desoladora e comovidamente triste. É uma tristeza de silêncio, macerada a tons de platina – duma parte; e doutra: um arrepio de angústia, um não-querer apavorado. Se eu lhe disser que toda esta minha tristeza a motiva a guerra – talvez sorria você, e entretanto é ela que, na verdade, a provoca pelas complicações horríveis que pode trazer à minha vida. Nem o meu amigo as calcula – nem eu lhas posso explicar. E não é tudo: é uma saudade, uma saudade tão grande e piedosa do meu Paris de Europa, atónito, apavorado e deserto. Sim, sem literatura eu lamento as grandes lojas fechadas, os cafés apagados – todo o conforto perdido! Teatros, pequeninos quartos de hotéis, os salões dos grandes costureiros... Tanta pena, tanta pena... Eu sinto-me em verdade a amante pequenina dum rapaz loiro de vinte anos que partiu para a guerra e não voltou... Doutra forma não posso explicar porque a esta hora sinto uma tristeza de beijos que nunca dei... uma saudade de mãos que não enlaçaram, talvez, as minhas – e tudo isto suscitado pela devastação que me rodeia... Porque sentirei tão estranhamente?

Meu Amigo, como uma vez você avisava numa sua carta – perdoe-me a literatura, e não duvide da sinceridade da minha tristeza. Estou horrivelmente desgraçado de alma – num nervosismo constante, vibrante e aniquilador. Horas de inquietação ziguezagueada as que vivo – mas de inquietação de mim próprio. Entanto talvez de mim próprio: como um pedaço de Europa. – Queria-lhe dizer muita coisa interessante, mas não posso. É-me um suplício físico cada letra que a minha vontade arrepiada, debotada, escreve. Apenas isto, muito por alto: lembrei-me longinquamente de escrever um livro intitulado: Paris da Guerra aonde iria anotando as impressões diárias: mas interseccionadamente: falando dos fluidos a que me referi na minha última carta, da tristeza de que falo nesta etc. Compreende? Tenho de resto muitos episódios a tratar assim. Diga o que pensa.

– Agora isto meu amigo – recorde-se: eu disse-lhe em Lisboa, no Café da Arcada: tenho a impressão que me sucede qualquer coisa em Paris, que «há» qualquer coisa em Paris, este verão, por agosto ou setembro. Recorda-se? É fantástico, não é verdade? Mas bem longe estava de supor uma guerra!...

– Recebi o livro do Ferro e Cunha que está na verdade muito bem apresentado e me deixou uma bela impressão. Transmita isto aos rapazes, pois não tenho forças para lhes escrever. Leia esta carta ao José Pacheco que é também para ele, em pensamento. E que me desculpe o não lhe escrever neste instante. Não posso! Não posso! Atravesso uma crise sem fim de tristeza dilacerada (não dilacerante: dilacerada). Eu bem sei. Mais do que nunca me vem a sensação do Fim.

Meu Amigo, aperte-me nos seus braços! Meus Amigos apertem-me estreitamente nos vossos braços. Adeus.

o
Mário de Sá-Carneiro

Pelo mesmo correio seguiu uma carta registada com 30 000 réis dentro para o meu querido Fernando Pessoa imediatamente mos enviar por vale telegráfico pois aqui não trocam notas estrangeiras.

 
Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5751

Classificação

Categoria
Espólio Documental
Subcategoria
Correspondência

Dados Físicos

Descrição Material
Tinta preta sobre folhas pautadas e timbradas e sobrescrito.
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
1914 Agosto 6
Notas à data
Inscrita.
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Fernando Pessoa
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Bom
Entidade detentora
Biblioteca Nacional de Portugal
Historial

Palavras chave

Locais
Paris
Palavras chave
Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Exposições
Itens relacionados
Esp.115
Bloco de notas
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.