Identificação
Carta enviada de Paris, no dia 20 de Julho de 1914.
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Paris – julho de 1914
Dia 20
Meu Querido Amigo,
Recebi hoje a sua carta que muito agradeço. Era desnecessário repetir-me a sua sinceridade dentro dela, por causa da literatura com que a ungiu. Eu nunca duvido dela em você – e foi-me mesmo deveras grato esse paulismo intermediário... Você deve talvez ter razão no que me diz sobre o meu estado de alma. Explicando melhor: eu hoje já não tenho estados de alma: isto é: sei apenas lembrar-me dos estados de alma que deveria ter em certos momentos e do respectivo género de sofrimento que esse estado de alma me devia provocar. Daí o eu ter-lhe falado do meu «embalsamamento» que, creia, é a melhor palavra para escrever o meu Eu actual. Quanto à minha vida artística, nada sei. Entretanto esta mesma artificialização, este mesmo embalsamamento a salva, porque a fixa. Assim apenas o que poderia era não aparecer nada de novo – apenas ideias novas. É bom pôr de parte talvez os pessimismos. Há apenas como factores con- trários, o meu egoísmo, a minha infantilidade que me fazem só trabalhar a prémio... Daí o perigo que um dia o «prémio» já não me pareça suficiente... Mas o certo é que terminei justamente agora, e dum jacto quase, a «Grande Sombra» – a qual principiarei a apurar amanhã. Logo...
Meu Amigo, até hoje sonetos seus apenas recebi dois a que já me referi, tenho a certeza, numa carta dizendo-lhe em resposta à sua classificação (de lepidópteros) que eram maravilhosos – e só não admiráveis por serem do Fernando Pessoa. Esses sonetos de resto chegaram já há muito tempo e não com a carta que trouxe o fim da ode do Campos. Nem nessa carta, que reli, você fala de sonetos. Veja pois que noção de erro: acrescentada nisto: há uns 8 dias o meu avô escreveu-me um postal em que me dizia que sobre o soneto nada podia dizer pois ele não tinha lá aparecido... Tratar-se-á dos sonetos que você não me enviou?... (em pleno erro!...)
Você tem razão, que novidade literária sensacional o aparecimento em 1970 da Correspondência inédita de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro – publicada e anotada por... (perturbador mistério!)
Que tal é a Labareda como aspecto? E como apresentação (queria dizer: colaboração). Você é claro que faz muito bem em mandar para lá ultrapaulismo, mas bem ultra!
Hoje, francamente, o assunto escasseia. Fico ansioso por conhecer as novas produções do simpático Ricardo Reis.
Extremamente curioso o que me diz sobre o seu desdobramento em vários personagens – e o sentir-se mais eles, às vezes, do que você próprio. Efectivamente descreve bem talvez esse estado o: «Ter-me-ia volvido nação?» E é verdade, de toda a alma lhe agradeço as suas palavras sobre mim. Elas são o meu maior orgulho.
Não me lembro de mais nada para lhe dizer se não que, se vir o José Pacheco lhe dê muitas saudades minhas e lhe diga que eu levarei muito a mal se ele continua no silêncio de até hoje – a ponto que nem eu ou o Franco sabemos se ele aí chegou...
E para você, com todos os agradecimentos repetidos mil abraços interseccionados em Ouro e Alma
O seu
Mário de Sá-Carneiro
O Franco agradece as suas saudades e retribui.