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Fundo
Mário de Sá-Carneiro
Cota
Esp.115/5_16
Imagem
Carta a Fernando Pessoa
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Autor
Sá-Carneiro, Mário de

Identificação

Titulo
Carta a Fernando Pessoa
Titulos atríbuidos
Carta a Fernando Pessoa
Edição / Descrição geral

Carta enviada de Paris, no dia 18 de Julho de 1914. 

 

 **

Paris – Julho de 1914

Dia 18

 

Meu Querido Amigo,

Recebi ontem a sua carta que muito agradeço. Gostaria muito, se fosse possível, conhecer o que sobre mim (e sobretudo o interseccionismo e Caeiro & C.a) o mano Reis escreveu. Mas sei bem que isso não será possível. Antes de mais nada uma importante e próspera novidade literária: Acabei ontem a «Grande Sombra» (em rascunho, bem entendido). Fiquei muito satisfeito com o que escrevi e li logo ao Carlos Franco. Apareceram alguns detalhes novos que sem serem primordiais são contudo interessantes. Dentro de mês e meio deverá você receber aí o manuscrito definitivo e dir-me-á depois a sua opinião. Já que estou com a mão na massa, vai aqui a ideia da tal «Novela Burguesa», que, muito provavelmente não escreverei – porque, interessante, não está bem na minha maneira. Um artista conta a seguinte aventura: ele frequenta (ou conhece apenas) uma família burguesa, mulher, marido, uma petiza. Gente modesta. O marido oficial do ministério das finanças. Mas vivem bem. E o artista descreve esse interior – não o compreendendo: não compreendendo que a dona da casa queira, mesmo de Inverno, a casa de jantar esfregada todos os sábados etc. E descreve a vida deles: mas segundo o seu modo de ver de artista, ingenuamente (humoristicamente – segundo a acepção do Pawlowski, um pouco, talvez) tendo enormes espantos por saber que ao domingo vão passear ao campo, que o marido tem uma opinião política, é sócio dum clube, vota, vai todas as noites ao mesmo café jogar o dominó. Que a mulher faz as contas à criada, determina o jantar, tem as suas pequenas jóias em vez de gastar todo o dinheiro que lhe vem às mãos etc. Não sei se você atinge bem a minha ideia: Suponhamos um burguês não compreendendo – por exemplo: não vamos mais longe: a minha e a sua vida – porque ele é a regra geral – o inferior: enquanto que nós somos os superiores: a excepção. Pois bem este artista olha os burgueses, não os entende, como se a gente como ele fosse a generalidade e os burgueses a excepção – como se sinceramente estivesse convicto disso! Assim admirar-se-ia de tudo isto (colocava-se aqui em subentendidamente o elogio dos medíocres de que eu uma vez lhe falei etc.). E acharei sublime, por exemplo, eles irem passar um dia de verão ao campo porque iam sofrer o calor, a poeira do comboio, o cansaço das longas caminhadas, as dores nos pés das botas apertadas etc. Ora essa gente tem um amigo que muita vez os acompanha e os visita: um colega do marido. Este (o marido) por pequeninas coisas desconfia que alguma coisa há entre ele e a mulher. Começa – embora não goste até muito da mulher, nem mesmo sexualmente – a ter cenas com ela. Um dia, provocadoramente, ela diz-lhe: pois bem, é verdade... Mas o marido depois dum acesso de cólera, lembra-se das virtudes burguesas... Vem-lhe o raciocínio... vai desgraçar-se... perder o seu lugar (ele que está prestes a ser nomeado 2.o oficial) depois a filha... E mesmo, no fundo, talvez mesmo só por cobardia – como a mulher lhe disse aquilo talvez por despeito – vai-se calando – apenas esfria de relações com o amigo. No ministério um dia porém vê-o escrever uma carta que começa: Minha Amélia (o nome da mu- lher)... Desfecha-lhe um revólver. É preso... Vem-se a saber depois que ele viu mal: a carta começava Minha Amiga – e era dirigida a outra mulher... O julgamento: ele conta o ciúme acumulado que o levou ao crime: mesmo que a sua filha, inocentemente, lhe dissera que o amigo uma vez viera ver a mamã, quando o pai não estava... A mulher interrogada diz que nunca foi amante do outro nem gostava dele... mas lhe aceitava a corte por não gostar do marido... E o júri absolve o herói desta «tragédia». Não sei se você, repito, compreende os intuitos, humorísticos em verdade, de ver a inferioridade da subgente normal – mas fazer ressaltar as dúvidas se isto não será afinal, na sua banalidade, no seu «primitivismo», não será interessante, e comparável às complicadas tragédias dos espíritos superiores (por exemplo: A Confissão de Lúcio) tão inexplicável, destrambelhado como elas. E sempre acentuando a incompreensão do Artista narrador. Enfim: pretenderia fazer a inversa disto: A Confissão de Lúcio ser contada por um burguês. Atinge bem. É claro que não escreverei isto, repito, porque em verdade, não vale a pena. Diga em todo o caso você a sua opinião. (E se percebeu.)

O meu estado de alma é o mesmo: entretanto como vê vou trabalhando, que é o principal. De resto as minhas dores são, em verdade, apenas «dores esquecidas» de que me lembro às vezes, apenas às vezes. E sofro então, tenho vontade de chorar – mas não por elas próprias que nunca existiram sinceramente – apenas pela sua recordação: pela recor- dação da possibilidade de elas existirem! Eis tudo. Isto assim é que é pôr as coisas nos devidos termos – deixemo-nos de ilusões!

Termino por hoje, meu querido Fernando Pessoa, com muitos abraços, muitas saudades d’Alma. Adeus.

o Mário de Sá-Carneiro

Diga ao Pacheco que me escreva!

Admiráveis, geniais os sonetos do Guisado que ontem recebi. Especialmente o segundo da «Elegia do Meu Ser».

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5745

Classificação

Categoria
Espólio Documental
Subcategoria
Correspondência

Dados Físicos

Descrição Material
Tinta preta sobre folhas lisas e sobrescrito.
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
1914 Julho 18
Notas à data
Inscrita.
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Fernando Pessoa
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Bom
Entidade detentora
Biblioteca Nacional de Portugal
Historial

Palavras chave

Locais
Paris
Palavras chave
Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Exposições
Itens relacionados
Esp.115
Bloco de notas
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.