Recebi ontem a sua carta que muito agradeço. Gostaria muito, se fosse possível, conhecer o que sobre mim (e sobretudo o interseccionismo e Caeiro & C.a) o mano Reis escreveu. Mas sei bem que isso não será possível. Antes de mais nada uma importante e próspera novidade literária: Acabei ontem a «Grande Sombra» (em rascunho, bem entendido). Fiquei muito satisfeito com o que escrevi e li logo ao Carlos Franco. Apareceram alguns detalhes novos que sem serem primordiais são contudo interessantes. Dentro de mês e meio deverá você receber aí o manuscrito definitivo e dir-me-á depois a sua opinião. Já que estou com a mão na massa, vai aqui a ideia da tal «Novela Burguesa», que, muito provavelmente não escreverei – porque, interessante, não está bem na minha maneira. Um artista conta a seguinte aventura: ele frequenta (ou conhece apenas) uma família burguesa, mulher, marido, uma petiza. Gente modesta. O marido oficial do ministério das finanças. Mas vivem bem. E o artista descreve esse interior – não o compreendendo: não compreendendo que a dona da casa queira, mesmo de Inverno, a casa de jantar esfregada todos os sábados etc. E descreve a vida deles: mas segundo o seu modo de ver de artista, ingenuamente (humoristicamente – segundo a acepção do Pawlowski, um pouco, talvez) tendo enormes espantos por saber que ao domingo vão passear ao campo, que o marido tem uma opinião política, é sócio dum clube, vota, vai todas as noites ao mesmo café jogar o dominó. Que a mulher faz as contas à criada, determina o jantar, tem as suas pequenas jóias em vez de gastar todo o dinheiro que lhe vem às mãos etc. Não sei se você atinge bem a minha ideia: Suponhamos um burguês não compreendendo – por exemplo: não vamos mais longe: a minha e a sua vida – porque ele é a regra geral – o inferior: enquanto que nós somos os superiores: a excepção. Pois bem este artista olha os burgueses, não os entende, como se a gente como ele fosse a generalidade e os burgueses a excepção – como se sinceramente estivesse convicto disso! Assim admirar-se-ia de tudo isto (colocava-se aqui em subentendidamente o elogio dos medíocres de que eu uma vez lhe falei etc.). E acharei sublime, por exemplo, eles irem passar um dia de verão ao campo porque iam sofrer o calor, a poeira do comboio, o cansaço das longas caminhadas, as dores nos pés das botas apertadas etc. Ora essa gente tem um amigo que muita vez os acompanha e os visita: um colega do marido. Este (o marido) por pequeninas coisas desconfia que alguma coisa há entre ele e a mulher. Começa – embora não goste até muito da mulher, nem mesmo sexualmente – a ter cenas com ela. Um dia, provocadoramente, ela diz-lhe: pois bem, é verdade... Mas o marido depois dum acesso de cólera, lembra-se das virtudes burguesas... Vem-lhe o raciocínio... vai desgraçar-se... perder o seu lugar (ele que está prestes a ser nomeado 2.o oficial) depois a filha... E mesmo, no fundo, talvez mesmo só por cobardia – como a mulher lhe disse aquilo talvez por despeito – vai-se calando – apenas esfria de relações com o amigo. No ministério um dia porém vê-o escrever uma carta que começa: Minha Amélia (o nome da mu- lher)... Desfecha-lhe um revólver. É preso... Vem-se a saber depois que ele viu mal: a carta começava Minha Amiga – e era dirigida a outra mulher... O julgamento: ele conta o ciúme acumulado que o levou ao crime: mesmo que a sua filha, inocentemente, lhe dissera que o amigo uma vez viera ver a mamã, quando o pai não estava... A mulher interrogada diz que nunca foi amante do outro nem gostava dele... mas lhe aceitava a corte por não gostar do marido... E o júri absolve o herói desta «tragédia». Não sei se você, repito, compreende os intuitos, humorísticos em verdade, de ver a inferioridade da subgente normal – mas fazer ressaltar as dúvidas se isto não será afinal, na sua banalidade, no seu «primitivismo», não será interessante, e comparável às complicadas tragédias dos espíritos superiores (por exemplo: A Confissão de Lúcio) tão inexplicável, destrambelhado como elas. E sempre acentuando a incompreensão do Artista narrador. Enfim: pretenderia fazer a inversa disto: A Confissão de Lúcio ser contada por um burguês. Atinge bem. É claro que não escreverei isto, repito, porque em verdade, não vale a pena. Diga em todo o caso você a sua opinião. (E se percebeu.)