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Fundo
Mário de Sá-Carneiro
Cota
Esp.115/5_14
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Carta a Fernando Pessoa
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Autor
Sá-Carneiro, Mário de

Identificação

Titulo
Carta a Fernando Pessoa
Titulos atríbuidos
Carta a Fernando Pessoa
Edição / Descrição geral

Carta enviada de Paris, no dia 13 de Julho de 1914. 

 

 **

 

Paris 13 julho 1914

Meu Querido Amigo,

 

Vou-lhe hoje escrever uma carta grande, parece-me (grande = extensão). Um tempo em extremo lepidóptero: calor (e ontem trovoada), mas sobretudo as impossíveis festas nacionais: balões, bailaricos, guitarras – como aí, tal e qual. Atravessando a rua Mazarine ontem eu e o Carlos Franco ficámos arrepiados, semiloucos pois vimo-nos de súbito em pleno Bairro Alto. Simplesmente, concentrando melhor o nosso espírito, concluímos o nosso erro e sossegámos só porque não era o fado o que as guitarras raspavam...

a) Sua carta – Recebi hoje a sua carta de 10 que, mais do que nenhuma outra muito, muito agradeço. É interessantíssimo o que nela me conta de Si. Compreendo optimamente o seu estado de «suspenso», de «boiar», estado da alma que, de resto, noutro sentido (quero dizer: noutra inflexão) eu já tenho experimentado. O que me diz sobre o seu «exílio», embora na verdade a minha vibratilidade o não possa aceitar com extrema simpatia, é quanto a mim um curiosíssimo fenómeno, mas um «admirável fenómeno» (perdoe-me a expressão estrambótica) no autor da «Ode» do Álvaro de Campos. Meu amigo, seja como for, desdobre-se você como se desdobrar, sinta-de-fora como quiser o certo é que quem pode escrever essas páginas se não sente sabe genialmente sentir aquilo de que me confessa mais e mais cada dia se exilar. Saber sentir e sentir, meu Amigo, afigura-se-me qualquer coisa de muito próximo – pondo de parte todas as complicações. E o que eu, da minha vibratilidade lastimaria em você que tão genialmente admiro e tão sinceramente como posso estimo – era apenas, talvez, que não pudesse fremir, que não soubesse imaginar fremir com aquilo que a minha alma oscila acima de tudo mais em leonino. De resto meu Amigo: repare bem no complicado e misterioso fenómeno: eu, eu que pelo contrário cada vez vendo que a única coisa que me poderia fazer sair de mim, como ver em alheamentos de verdadeiro Artista é aquilo a que englobadamente chamo Europa – eu, sinto que nunca poderia ter escrito a ode do Álvaro de Campos, porque em todo o caso não amo tudo que ele canta suficientemente para assim o fixar... «sinto» menos do que ele, «amo» menos do que ele, «estrebucho» menos do que ele as avenidas da ópera, os automóveis, os derbys, as cocotes, os grandes boulevards... E eu amo isso tudo portanto de tal ânsia a brasa!... Quer ver, eu encontro uma explicação fácil para o facto de justamente após o caso Álvaro de Campos você se sentir mais afastado do mundo. Oiça: Eu amo incomparavelmente mais Paris, eu vejo-o bem mais nitidamente e compreendo-o em bem maior lucidez longe dele, por Lisboa, do que aqui, nos seus boulevards onde até, confesso-lhe meu Amigo, por vezes eu lhe sou infiel e, em vislumbre, me lembro até da sua desnecessidade para a minha alma, para a minha emoção... Assim em você, meu Amigo, é isto só: não sente já ânsia de conhecer cidades, Europa, progresso, porque tudo isso você viajou, hiperviajou, hiperconhece, hiperpossuiu ao escrever a sua admirável obra – uma das coisas suas maiores, repito, mais geniais e daquelas de que eu menos duvido, das que mais garanto! Tudo isto vem apenas aumentar – e você deve ao ouvi-lo embebedar-se de si – a sua grandeza divina, perturbadora, secular! Meu querido Amigo, juro-lhe que não exagero, que não literatizo, que não deixo a minha pena seguir inadvertidamente: eu a cada linha mais sua que leio sinto crescer o meu orgulho: o meu orgulho por ser, em todo o caso, aquele cuja obra mais perto está da sua – perto como a terra do sol – por o contar no número dos bem íntimos e em suma: porque o Fernando Pessoa gosta do que eu escrevo. Não são declarações de amor: mas tudo isto, toda esta sumptuosidade e depois a grande alma que você é, fazem-me ser tão seu amigo quanto eu posso ser dalguém: encher-me de ternuras, gostar, como ao meu pai, de encostar a minha cabeça ao seu braço – e de o ter aqui, ao pé de mim, como gostaria de ter o meu Pai, a minha Ama ou qualquer objecto, qualquer bicho querido da minha infância! Só lhe peço que me desculpe a maneira como me exprimo – mas a única como me posso exprimir em inteira sinceridade. E lastime-me um pouco também... Creia, meu querido Fernando Pessoa, percamos por completo as ilusões: eu toco o fim – um fim embandeirado, mas em todo o caso um limite. Acabei já – acabei após a minha chegada aqui. Hoje sou o embalsamemento de mim próprio. Não tenho estados de alma, nem os posso ter já porque dentro de mim há algodão-em-rama (o algodão-em-rama que há dentro dos animais naturalizados)... Estados de alma, ânsias, tristezas, ideais, grandes torturas de que saíam os meus livros tudo isso acabou... Ilusões de glória, «de espanto» já não existem em mim. Entusiasmos do que eu sou, tão-pouco, porque de mais sei o que sou. Sou o que quero – o que queria Ser; mas sei que o sou. Logo... Meu Amigo eu na vida andei sempre para «gozar», para ser o principal personagem de mim próprio, o personagem principal da minha vida – mas hoje já o não posso ser, porque sei o papel de cor – e desempenhar-me só me pode fazer bocejar no grande tablado hoje para mim coberto de serapilheiras – serapilheiras em que se volveram tapetes roxos que na verdade nunca existiram mas que eu podia, sabia imaginar... depois eu sou uma criança – tantas vezes lho gritei – e a criança hoje vê a sua idade terminada, bem terminada – terminada há muito, mas só hoje, depois da partida do meu Pai para a África, da casa desfeita, terminada em ilusão. Para trás de mim existe o irremediável; o que nunca mais, nunca mais se pode repetir mesmo em miragem. Meu Amigo: nunca mais terei quem arrume a minha roupa nas gavetas, e quem de noite me aconchegue a roupa... alguém que me faça isto e tenha assistido à minha infância... Estou só – dos outros – só de mim para sempre. E as minhas saudades, as minhas lágrimas que unicamente assomam – vão, longinquamente, para as ruas da minha quinta quando eu tinha cinco anos, e o leito pequeno de ferro em que eu dormia então, e certa manhã em que, quando acordei, andava um pássaro no meu quarto, e os passeios às tardes tristes em Lisboa, com a minha Ama – em que eu era já o que hoje sou quase... e mais modernamente as últimas ilusões da minha infância: aquele cãozito mops [?] que você ainda conheceu e corria a buscar as pedras que eu lhe atirava... e o meu escritório da Travessa do Carmo onde eu lhe lia, a si, as minhas coisas, onde outrora tanto sonhei com o meu primeiro livro, onde tanto projecto, tanto amigo passou – e onde ainda este ano no dia 1.o de janeiro, eu e o Pacheco e o Franco bebemos champanhe, com o fogão aceso, «fomos» Paris!... Vê: é toda esta futilidade, estas «mariquices», meu amigo que eu lamento, numa grande dor – mas não em uma dor arrependida: consegui à força talvez só de o querer, obter o que ambicionava: Paris. Simplesmente era essa a última maravilha – o fim, a apoteose (e foi neste estado de espírito que eu escrevi o soneto «Apoteose» e assim o denominei). Quanto a pessoas as minhas saudades vão àqueles que compuseram a minha infância – e vão a si, ao Rola, ao Cabreira: os dois últimos como precursores de si, você como o amigo, o companheiro dos brinquedos do meu génio – e aquele que assistiu ao seu nascimento, à sua infância, que arrumou a sua roupa, lhe aconchegou os cobertores – aquele a quem sempre confiadamente recorri e corri mostrando as minhas obras – como corria à minha ama para me deitar – e, antes de adormecer, não queria que ela fosse embora de ao pé de mim com medo dos ladrões... Perdoe-me! Perdoe-me todas estas digressões, estas inferioridades aparentes – mas repito só assim posso exprimir-me em franqueza completa! É este todo o descalabro da minh’alma. O meu futuro literário é este: a conclusão da «Grande Sombra», a composição de mais alguns contos para o volume Céu em Fogo (talvez mesmo só das «Asas») possivelmente alguma outra novela importante – só uma – e várias poesias. Não quero fazer mais. E não posso fazer mais. E tudo quanto mais farei sê-lo-á feito automaticamente, melhor – já está feito. Foi feito em alma antes do fim – mas «no fim» sê-lo-á executado materialmente. Meu amigo, creia-me, tudo quanto doravante eu hoje escrever são escritos póstumos. Infeliz- mente não me engano – como não me enganei na minha volta a Paris. Não lhe dizia tanta vez que não «me via» como uma obra muito longa? Entretanto qual será o meu fim real? Não sei. Mas, mais do que nunca acredito, o suicídio... pelo menos o suicídio moral... Acabarei talvez em corpo exilado da minha alma. Mas creio menos nesta hipótese. Nas páginas psicológicas da «Ressurreição» está bem descrito o meu estado de alma actual – apenas não seguirei coberto na vitória maior, possuindo Paris, a executar a minha obra – justamente porque estou liberto e tenho Paris! Meu Amigo, deixe-me dizer-lhe imodestamente – a razão de tudo isto está naquela quadra da Dispersão:

A grande ave dourada Bateu asas para o céu,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava o céu...

O céu da minha obra não quero dizer que seja grande – não sei se na verdade o será. Entretanto estou bem certo que é pesadamente dourado (talvez de ouro falso, mas em todo o caso dourado) com muitas luzes de cor, e lantejoulas, todas a girar, fumos policromos, aromas, maquilagens, lagos de água, dançarinas nuas, actrizes de Paris, salas de restaurantes, densos tapetes... E isso me basta. Passei na vida literária, creio, uma rapa- riga estrangeira, esguia, pintada, viciosa, com muito gosto para se vestir bizarramente – pelo menos – e para dispor orquídeas em jarras misterio- sas, em esquisitas talhas do Japão – gulosa de morangos e champanhe, fumando ópios, debochada – ardendo loucamente. E se assim é, se não me engano: eu fui o que quis: a minha obra representa zebradamente entre luas amarelas aquilo que eu quisera ser fisicamente: essa rapariga estrangeira, de unhas polidas, doida e milionária... Perdoe-me mais uma vez tomar-lhe tempo com tudo isto, tão mal exprimido – e já agora, peço-lhe, fale longamente de tudo quanto lhe digo de mim... Assim me dará uma ilusão: a ilusão da sua companhia e, não lhe sei explicar porquê, a ilusão de que ainda me interesso por mim...

– Fico muito satisfeito pelo que me diz sobre a sua evolução – que hoje atingiu enfim o período completo da sua maturidade intelectual. Essa certeza dar-lhe-á por certo no seu entusiasmo horas intensas de cria- ção, horas intensas tenho a certeza de execução material.

– É claro que teria sido melhor não falar do Caeiro ao Lopes. Mas o que não tem remédio, remediado está. Nunca devemos ter confidên- cias com quem «não é dos nossos», não nos compreende... Por mim, confio-me a toda a gente. Logo...

– Fez é claro muito bem em distribuir os exemplares dos meus livros. Você é de resto proprietário deles...

b) Literatura – Esqueceu-me outro dia, no postal, de me referir aos excertos que concluem a ode do Álvaro de Campos. São admiráveis, genialmente completando essa obra. E emocionou-me, acima de tudo, encarando como das coisas mais belas de todo o trabalho, a ideia que nas correias de transmissão andam já pedaços do Alexandre Magno do século 50, do Shakespeare do século 100.

Tenho uma ideia para uma novela que não escreverei talvez, «Novela Burguesa», de que lhe darei conta noutra carta pois já estou fatigado de escrever. Essa novela, que não me interessa demasiadamente por interessante que seja, seria uma parelha da novela errada. Depois contarei. Fiz outro dia estas duas quadras lepidópteras de nenhuma poesia mas que no entanto aqui transcrevo:

Barcaças dos meus ímpetos tigrados,
Que oceanos vos sumiram de segredo?
– Partiste-vos, transportes encantados
De encontro em alma ao roxo, a que rochedo?

 

Ó nau perdida, ó ruiva de aventura Onde em champanhe a minha ânsia ia, Perdeste-vos também ou, porventura, Fundeaste a Oiro em portos d’alquimia?

c) Santarritana: Pela segunda vez depois que aqui estou estive hoje com o Santa-Rita que foi ao meu hotel. Uma notícia sensacional: O Santa-Rita vai para (não a) Lisboa em Setembro próximo! É claro que, como tem de ir, ele se mostra satisfeito por isso mesmo (quando o ano passado me dizia ser essa a maior tragédia). Disse. «Compreende vou lá para baixo fazer a minha obra, impor-me socialmente. De resto é muito duro Paris durante tanto tempo, esgota-nos!» Veio-me pedir para eu arranjar um editor para a tradução portuguesa dos manifestos do Marinetti (livro le Futurisme e os últimos trabalhos). Pedido – disse – feito em nome do Marinetti. Para ser amável escreverei a qualquer livreiro daí que dirá que não...

Adeus, meu querido Fernando Pessoa.

Perdoe-me tudo, tudo.

E um grande, grande abraço do seu pobre

 

Mário de Sá-Carneiro Escreva breve!

Saudades do Carlos Franco!

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5743

Classificação

Categoria
Espólio Documental
Subcategoria
Correspondência

Dados Físicos

Descrição Material
Tinta preta sobre folhas pautadas, timbradas ("Café Royan") e sobrescrito.
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
1914 Julho 13
Notas à data
Inscrita.
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Fernando Pessoa
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Bom
Entidade detentora
Biblioteca Nacional de Portugal
Historial

Palavras chave

Locais
Paris
Palavras chave
Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Exposições
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Esp.115
Bloco de notas
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.