Estou-me volvendo, decididamente, num boneco muito pouco interessante. Recebi ontem a sua carta entusiástica sobre o Sr. Mendes do Almada Negreiros. Abrace o rapazinho por mim. Hoje mando beijos para ele num postal que você provavelmente receberá antes desta carta por via da censura. Vai junto um retrato duma petite-femme do Café Riche que é outra incarnação do Almada como você logo verá. Autoria do retrato: sr. Ferreira da Costa. Dê o boneco ao pequeno bem como o postal que envio ao seu cuidado pois na Brasileira o podem surripiar. Não sei como isto há-de ser decididamente. Eu bem quero, mas não há maneira. A tômbola gira cada vez mais desordenada. Sobretudo não posso estar um momento quieto.
É uma febre, uma febre. Quando vou a casa do F. da Costa escangalho sempre as franjas do tapete – e outro dia parti-lhe um cinzeiro. Hoje saí de casa. Estive já na terrasse do Americano. Não sosseguei. Agora, não sei porquê, estou na Taverne Pousset que é um café com que eu embirro imenso. Depois tenho o jantar. Depois outro café. Mas que raio hei-de fazer? E antes de ontem pedi 500 francos para Lisboa. Provavelmente não mos mandam. Também não preciso deles para nada. Mas é um horror, um horror. Uma vertigem de aborrecimento – um comboio expresso de anquilose.
Aborrecimento na alma, por todo o corpo: e o que é pior: nos intestinos. Borbulhas na testa e no pescoço. Tudo isto, juro-lhe, provocado pelo meu estado de alma impossível, e cada vez mais sem remédio. Uma vontade imensa de me embebedar, mas nos ossos. Depois – sem literatura – de súbito, focam-se-me nitidamente coisas estrambóticas, que devem ser recordações: ontem à noite, uma galinha de vidro azul a assar no espeto – sim de vidro azul: e peças de bordados redondos, ocultando qualquer coisa por baixo que mexia e devia ser detestável. Os bordados eram brancos e cor-de-rosa – e mexiam os estuporinhos, mexiam! Onde irá isto parar – é que eu não sei. Depois o que havia em mim de interessante é hoje papel rasgado. Estou farto! farto! farto! Merecia que me pusessem um barretinho de dormir todas as noites – palavra, meu querido Amigo. E o pior é que tenho perfeitamente a noção de tudo quanto lhe escrevo – que estou em mim perfeitamente e tanto que lhe vou dizer que o Jean Finot (director da Revue) disse ao F. da Costa que lhe fez o retrato e entrevistou que tinha o maior prazer de inserir na sua revista artigos sobre a literatura portuguesa moderna. Isto deve mesmo sair no Século. Era ocasião magnífica para você escrever um artigo sobre a «jovem literatura» aí de baixo. Mas não diga mal de ninguém. Lepidóptero claro, o Jean Finot – que lê português – acha admirável o Jean de Barros já vê. Mas podia só falar de nós e dos renascentes. Era interessante. Você provavelmente é que não está para isso. Em todo o caso era muito interessante. Garanto-lhe que o artigo seria publicado. Você enviar-mo-ia a mim que eu o faria chegar ao Finot. Artigo claro «sage». Ou então enviá-lo directamente se por acaso você preferisse isto: assiná-lo com um nome qualquer: Ismael de Campos – para poder falar do Fernando Pessoa.
Pense em tudo isto.
– Orfeu mundial: O C. Ferreira contou-me que falando ontem a um comerciante Eduardo de Azevedo em casa dele, por acaso, no meu nome – ele logo: Ah! já sei, um dos malucos do Orfeu: e duma gaveta ei-lo que tira brandido na mão o nosso terrível 2 prateado! Lera a Capital, em Nantes – onde habita normalmente – e a um amigo de Lisboa logo pedira a revisteca. Soberbo! Soberbo!!!
Olhe você perdoe toda esta carta que afinal é um desabafo. Você compreende que se eu batesse aqui um murro na mesa era um escândalo. Pois bem as asneiras psicológicas que atrás refiro – são esse murro. Perdoe. Escreva. Dê o retrato e o postal ao Almada.
Mil abraços, mil saudades
do seu, seu