Identificação
Carta enviada de Paris, no dia 27 de novembro de 1915.
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Paris – Novembro 1915
Dia 27
Meu Querido Amigo,
«Cuidem apenas de que eu tenha sempre a meu lado».
Parece-lhe bem? Mas deve ser de que ou só que? E seria preferível tirar o eu? Isto é de mínima importância – mas, para meu sossego, suplico-lhe que não deixe de me dizer em que versão me devo «arrêter». A forma anterior – que lhe escrevi numa carta era: «Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado». Mas modifiquei-a pois há muitos fazer próxi- mos. Em todo o caso diga se acha preferível esta versão. Não se esqueça. Isto, claro, se achar valor à «Caranguejola» – que, sendo assim, irá para oColete-de-Forças, bem entendido. – Os outros dois poemas encontrei-os antes de ontem remexendo velhos papéis. «Desquite» foi a primeira coisa que aqui escrevi, antes mesmo da «Escala». Mas amarrotei o papel pare- cendo-me os versos incompletos e maus. Relendo-os duvido se se podem aproveitar. Lavre você a sua sentença – bem como ao «Ápice», cuja história é a mesma. Entre muitos outros versos soltos de poesias incompletas encontrei estas duas quadras também:
... De repente a minha vida
Sumiu-se pela valeta...
– Melhor deixá-la esquecida
No fundo duma gaveta...
(Se eu apagasse as lanternas
Pra que ninguém mais me visse,
E a minha vida fugisse
Com o rabinho entre as pernas?...)
Isto cheira a Colete-de-Forças. Mas parece-me que, francamente, não se deve aproveitar. Fale ainda você. Antes de saber a sua opinião sobre quanto lhe pergunto – não escreverei os versos no meu caderno. A propósito de quadras «As duas ou três vezes que me abriram a porta do salão...», segundo as suas indicações, lembrei-me deste título «Campainhada». Que lhe parece?
E ponto, sobre literatura – mas não deixe de me responder a tudo isto com brevidade. Perdoe tanta estopada.
Orfeu mundial – Ontem de manhã o Carlos Ferreira veio a minha casa e pediu-me emprestado para ler um volume do Céu em Fogo que eu tinha sobre a minha mesa. Saímos, fui almoçar – e ele, que tinha que fazer, veio encontrar-se comigo, depois do almoço, num café. Contou-me então que acabara de encontrar um português Botica aqui empregado há muito. Este sujeito por acaso olhou para o livro que o C. F. tinha na mão e, ao ver o meu nome exclamou: «Ah! isso é do homem do Orfeu; hás-de emprestar-me isso!» O C. F. que lhe respondera: «não posso, porque o livro não é meu, foi o próprio autor que mo emprestou agora mesmo.» E o homenzinho, pondo as mãos na cabeça: «O quê, o Orfeu está em Paris? Co’a breca, toca a fugir rapazes!!...» Note que o C. F. era a primeira vez que encontrava este homem que vive aqui há muito tempo... E repare que só ao ver o meu nome, o efeito foi mágico: ele evocou-lhe logo o Orfeu. Não é também consolador?...
– Ministério das Finanças: vejo pelo seu postal que posso contar com o que pedi aos livreiros. Mas se ainda não me mandaram todo o dinheiro – urge que mandem o restante o mais breve possível. Já de resto escrevi para o Augusto neste sentido, ontem. Mas você vá recordando. Tenha paciência, meu querido amigo, mais uma vez em tanto o incomodar. E não descure também o caso do Crédit Lyonnais conforme a minha última carta. Fale-me de tudo isto em volta do correio.
– Quando o Dr. Leal partir diga-me. Mas que vai ele fazer a Sevilha? Você sabe? E parece-lhe que ele arranjou dinheiro? Quanto a Pacheco & C.ia, ainda falam em vir? Não deixe de me informar a este respeito, pois tenho muita curiosidade.
Escreva na volta do correio!
Mil abraços.
o seu, seu
M. de Sá-Carneiro
Nota final:
A uma dentista europeia (pois é sobrinha do Dr. Lombard, protagonista dum escândalo recente de falsos atestados médicos, affaire de que os jornais falaram largamente – e estando o titi preso) conhecida do Ferreira da Costa ouvi outro dia, esta bela definição de belo, que não deve na verdade ser da clínica, mas que acho interessante e, sobretudo, definidora do belo interseccionista: «Belo é tudo quanto nos provoca a sensação do invisível.» Diga também você o que pensa desta piada...
Do Franco não sei ainda mais nada.