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Fundo
Mário de Sá-Carneiro
Cota
Esp.115/6_65
Imagem
Carta a Fernando Pessoa
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Autor
Sá-Carneiro, Mário de

Identificação

Titulo
Carta a Fernando Pessoa
Titulos atríbuidos
Carta a Fernando Pessoa
Edição / Descrição geral

Carta enviada de Paris, no dia 27 de novembro de 1915. 

 

 **

Paris – Novembro 1915

Dia 27

 

Meu Querido Amigo,

 
Recebi ontem o seu postal de 2 o que muito agradeço. Mando-lhe hoje versos. A «Caranguejola» é um poema que fiz ultimamente. Dou-lhe esse título porque o estado psicológico de que essa poesia é síntese afigura-se-me em verdade uma verdadeira caranguejola – qualquer coisa a desconjuntar-se, impossível de se manter. Ignoro se você aprovará o título como, outrossim, ignoro mesmo se gostará da poesia. Aquilo é desarticulado, quebrado – o próprio pseudoverso desconjuntado, não se mantendo, em suma: uma verdadeira caranguejola na forma como no sentido: Diga-me você do valor do estuporinho. Por mim creio que, das duas uma: ou é muito bom ou muito mau... Há um verso que se me volveu numa obsessão e não há forma de me agradar: – é o que grafo:

«Cuidem apenas de que eu tenha sempre a meu lado».

Parece-lhe bem? Mas deve ser de que ou só que? E seria preferível tirar o eu? Isto é de mínima importância – mas, para meu sossego, suplico-lhe que não deixe de me dizer em que versão me devo «arrêter». A forma anterior – que lhe escrevi numa carta era: «Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado». Mas modifiquei-a pois há muitos fazer próxi- mos. Em todo o caso diga se acha preferível esta versão. Não se esqueça. Isto, claro, se achar valor à «Caranguejola» – que, sendo assim, irá para oColete-de-Forças, bem entendido. – Os outros dois poemas encontrei-os antes de ontem remexendo velhos papéis. «Desquite» foi a primeira coisa que aqui escrevi, antes mesmo da «Escala». Mas amarrotei o papel pare- cendo-me os versos incompletos e maus. Relendo-os duvido se se podem aproveitar. Lavre você a sua sentença – bem como ao «Ápice», cuja história é a mesma. Entre muitos outros versos soltos de poesias incompletas encontrei estas duas quadras também:

... De repente a minha vida

Sumiu-se pela valeta...
– Melhor deixá-la esquecida

No fundo duma gaveta...

(Se eu apagasse as lanternas
Pra que ninguém mais me visse,
E a minha vida fugisse
Com o rabinho entre as pernas?...)

Isto cheira a Colete-de-Forças. Mas parece-me que, francamente, não se deve aproveitar. Fale ainda você. Antes de saber a sua opinião sobre quanto lhe pergunto – não escreverei os versos no meu caderno. A propósito de quadras «As duas ou três vezes que me abriram a porta do salão...», segundo as suas indicações, lembrei-me deste título «Campainhada». Que lhe parece?

E ponto, sobre literatura – mas não deixe de me responder a tudo isto com brevidade. Perdoe tanta estopada.

Orfeu mundial – Ontem de manhã o Carlos Ferreira veio a minha casa e pediu-me emprestado para ler um volume do Céu em Fogo que eu tinha sobre a minha mesa. Saímos, fui almoçar – e ele, que tinha que fazer, veio encontrar-se comigo, depois do almoço, num café. Contou-me então que acabara de encontrar um português Botica aqui empregado há muito. Este sujeito por acaso olhou para o livro que o C. F. tinha na mão e, ao ver o meu nome exclamou: «Ah! isso é do homem do Orfeu; hás-de emprestar-me isso!» O C. F. que lhe respondera: «não posso, porque o livro não é meu, foi o próprio autor que mo emprestou agora mesmo.» E o homenzinho, pondo as mãos na cabeça: «O quê, o Orfeu está em Paris? Co’a breca, toca a fugir rapazes!!...» Note que o C. F. era a primeira vez que encontrava este homem que vive aqui há muito tempo... E repare que só ao ver o meu nome, o efeito foi mágico: ele evocou-lhe logo o Orfeu. Não é também consolador?...

– Ministério das Finanças: vejo pelo seu postal que posso contar com o que pedi aos livreiros. Mas se ainda não me mandaram todo o dinheiro – urge que mandem o restante o mais breve possível. Já de resto escrevi para o Augusto neste sentido, ontem. Mas você vá recordando. Tenha paciência, meu querido amigo, mais uma vez em tanto o incomodar. E não descure também o caso do Crédit Lyonnais conforme a minha última carta. Fale-me de tudo isto em volta do correio.

– Quando o Dr. Leal partir diga-me. Mas que vai ele fazer a Sevilha? Você sabe? E parece-lhe que ele arranjou dinheiro? Quanto a Pacheco & C.ia, ainda falam em vir? Não deixe de me informar a este respeito, pois tenho muita curiosidade.

Escreva na volta do correio!

Mil abraços.

o seu, seu
M. de Sá-Carneiro

Nota final:

A uma dentista europeia (pois é sobrinha do Dr. Lombard, protagonista dum escândalo recente de falsos atestados médicos, affaire de que os jornais falaram largamente – e estando o titi preso) conhecida do Ferreira da Costa ouvi outro dia, esta bela definição de belo, que não deve na verdade ser da clínica, mas que acho interessante e, sobretudo, definidora do belo interseccionista: «Belo é tudo quanto nos provoca a sensação do invisível.» Diga também você o que pensa desta piada...

Do Franco não sei ainda mais nada.

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5691

Classificação

Categoria
Espólio Documental
Subcategoria
Correspondência, Poesia

Dados Físicos

Descrição Material
Tinta preta sobre papel quadriculado e sobrescrito.
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
1915 Novembro 27
Notas à data
Inscrita.
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Fernando Pessoa
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Bom
Entidade detentora
Biblioteca Nacional de Portugal
Historial

Palavras chave

Locais
Paris
Palavras chave
Orpheu, Futurismo, Modernismo
Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Exposições
Itens relacionados
Esp.115
Bloco de notas
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.