Identificação
Carta enviada de Paris, no dia 29 de outubro de 1915.
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Meu Querido Amigo,
Já estava com cuidado. Habituado a receber notícias mais duma vez por semana, seguramente há 10 dias ou mais que não recebia nada seu – quando, particularmente, no seu último postal você me anunciava uma carta para o dia seguinte. Rogo-lhe que faça todo o possível para evitar estes longos períodos de silêncio. Quando nada me tenha a dizer, mande-me saudades num postal. Sim? Eu faço o mesmo.
Recebi pois hoje o seu bilhete de 24 que muito agradeço. De mim nada de novo. Eu não sei se terá aparecido na Ilustração Portuguesa uma «saloperie» minha a acompanhar uns mamarrachos do pintor Ferreira Cardona, digo: Ferreira da Costa*.
Você perdoe-me! Mas o homenzinho pediu-me muito, eu não gosto de negar – e depois se me dou com ele, é que se o seu atelier não é ultraconfortável e moderno como o do Manuel Lopes (da «Ressurreição») – é em todo o caso vasto e quente. Mas há mais: o homem do Orfeu a assinar artigos na Ilustração ao lado do colega Dantas tem muito chiste, pois não tem? Será descer – mas é com pilhéria. E no escrito há no entretanto: «horas granates», «legiões guturais», «cristal e asas», «timbrados a oiro», vários itálicos psicológicos etc. – embora a ensemble droguista, principalmente atendendo ao nome que a assina. Queira Deus no entanto – e anima-me muito essa esperança – que o escrito tenha sido interdito pelo J. M. de Freitas (como-que-director da I. P.) devido ao nome indecoroso que o assinou. Oxalá. Mas no caso contrário você perdoa-me. Pois não é verdade que me perdoa?
(Lembre-se que também tem culpas no cartório! Eh! Real!... por exemplo...)
Escrevi ao Augusto dizendo-lhe desnecessário enviar-me os 50 francos que pedira há dias. Com efeito estava a ver que com o dinheiro às mijinhas não conseguia nunca comprar os artigos de vestuário que necessito tanto. Felizmente apareceu aqui o Carlos Ferreira com muito dinheiro. Assim ele emprestou-me 150 francos cujo pagamento só precisa dentro dum mês. Deste modo comprei o que tinha a comprar e torna-se desnecessário a livraria enviar-me já o dinheiro. É imprescindível porém que mo envie em maior quantidade (pelo menos 100 francos) no fim do próximo mês de novembro. Explique isto bem ao Augusto. Comece já a maçá-lo: ele é um santo, de resto! Pode-lhe mesmo mostrar esta carta. Eu creio (segundo a carta que em tempos você me enviou) ter ainda na livraria uns 40-50 mil-réis. Já lhe explico como:
400 Orfeus vendidos em Lisboa 84 000
100 Orfeus província (hipótese) 21 000
115 000
Passivo:
Conta devida na Livraria 50 000
50 francos enviados este mês 15 000
65 000
a meu favor 50 000 réis.
Você dizia-me com efeito que o Augusto o informara que eu devia na casa não mais do que 45 000 réis. 5000 a mais é o importe dos livros que depois mandei vir. Oxalá não me engane. Enfim veremos. Mas seja como for pelo menos 100 francos (30 000 réis) há-de lá ter – e isso é que é o mínimo imprescindível de que eu necessito receber no fim do mês. Se houvesse alguém que comprasse o saldo dos Orfeus (guardando você quantos exemplares quisesse, por exemplo 40) mesmo a 10 réis acho que valia a pena pois para nada servem em armazém. Fale ao Augusto a este respeito também, não se esqueça. De resto brevemente lhe escreverei repetindo-lhe tudo isto. Perdoe-me tantas maçadas e tão antipáticas. A eterna miséria!!... Mas não se esqueça de me informar a este respeito, não?
Novidade gratíssima: o Carlos Franco escreveu-me dizendo que vai muito brevemente chegar a Paris com 6 dias de licença. Será para mim, como calcula, um grande prazer, todo a ouro, pois vou falar com uma Alma, o que não me sucede desde que me despedi de você na gare do Rossio. O pintor Costa – ui! que lepidóptero. Agora o Carlos Ferreira, pobre diabo, intrujão inofensivo, bom rapaz – e que – perdoe-me a infâmia – caiu como sopa no mel a emprestar-me os 150 francos... É triste o egoísmo da vida... Mas não tenho razão?...
Adeus, meu querido Amigo. Perdoe-me esta carta antipática em todo o sentido e não se esqueça de me responder ao que nela lhe peço.
Um grande abraço de toda a alma
o seu seu Mário de Sá-Carneiro
O C. Ferreira – que fala de você com uma ardente simpatia, e isto é já uma superioridade – sabendo que eu hoje lhe devia escrever pediu-me esta manhã para lhe enviar muitas saudades.
* Este engano propositado de nome encare-o como uma descrição psicológica.