Virtual Archive of the Orpheu Generation

Mário de Sá-Carneiro

The Virtual Archive of Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), modernist poet, includes his correspondence, notebooks, manuscripts and published work during his lifetime. Most of these documents were gathered by François Castex, French intellectual, and are kept at the National Library of Portugal. Also included here are letters sent by the author to his great friend Fernando Pessoa.

The full documents can be found in the 'PDF' box and the manuscripts have been transcribed in the 'Edition' box. 

 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/6_47
Esp.115/6_47
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Paris, no dia 2 de outubro de 1915. 

 

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Paris – Outubro 1915

Dia 2

Meu Querido Amigo,

 

Europeiamente carimbada com o selo da autoridade militar que em Bordéus a abriu recebi hoje a sua magna-carta. Em primeiro lugar quero-lha agradecer vivissimamente. Foi uma querida meia hora que passei lendo as suas páginas. Quem me dera ter todas as semanas uma carta assim. E ela veio-me dispor tão bem quanto eu – na minha eterna desolação – posso estar bem-disposto tanto mais num dia de plena e grande constipação. E você sabe que uma destas macacoas é em mim uma verdadeira catástrofe. Vai-me perdoar até esta carta que será uma rápida e essencial, meramente essencial, resposta ao seu supremo relatório. Em primeiro lugar: não aceito as suas desculpas quanto ao dispor dos n.os do Orfeu nem tão-pouco compreendo o espanto que lhe causa a «liquidação». Liquidação significa muito simplesmente que é tempo de se ver quantos Orfeus há vendidos – e de eu receber a importância da venda: de que já falei ao meu pai – conforme julgo ter-lhe dito. Os exemplares não vendidos para que os quero? Disponha você de quantos, mas inteirammte de quantos entender. Quando o Céu em Fogo o pagaram a 40 rs. o exemplar – nem 10 réis estou certo dariam pelos Orfeus. Repito por consequência que estranhei deveras a sua pergunta. E faça o que quiser dos Orfeus. As sobras ficam na livraria às suas ordens – peço-lhe o favor de dizer isto ao Augusto. Bem entendido se alguém as comprasse mesmo a 10 réis, podiam-se vender. Mas isso não urge de maneira alguma. Disponha pois de quantos Orfeus quiser. – O Santa-Rita deveras é um grande maçador. Estou farto de o aturar aqui com a questão do Orfeu. Hoje vai uma carta para você ler e que chegou hoje mesmo. Aí já está disposto a que você dirija inteiramente a revista: ele só tem interesse em publicar os seus bonecos e do Picasso. Em primeiro lugar isto é uma chuchadeira pois eu não creio de forma alguma que o Santa-Rita vá pagar o Orfeu mesmo para publicar os seus bonecos: tanto mais que o conheço bem em questões de dinheiro: aí perfeitamente normal, tocando a economia quase. Nada o meu género ou Pacheco. O contrário até, quase. Que hei-de eu responder ao Pintor? Olhe, continuo a dizer-lhe que sim e mais que também – que se entenda com você: que eu não quero fazer o Orfeu – e que ele é meu e de você, unicamente. Você mande-o para o diabo. Mas se em todo o caso ele verdadeira e seriamente oferecesse pagar o Orfeu deixando inteiramente a direcção literária a seu cargo? Nem mesmo que isto se desse, julgo viável o plano. Mas você decidiria. Por mim devo-lhe dizer que por uma carta que escrevi ao meu Pai não posso figurar como director do Orfeu. Há o seguinte: Orfeu saindo com o meu nome dificilmente o meu Pai acreditará, nos 1.os instantes (que para Lourenço Marques são 30 dias) que a parte monetária não é ainda sob a minha responsabilidade. Assim, em inteira franqueza, eu preferiria que durante dois meses não saísse a revista. Depois, já o caso era diferente. Não me alongo sobre o assunto que me irrito. Atravesso de mais um período de grande tristeza, de melancolia branca de não sei que saudade irrealizável. O que quero é que me deixem em paz.

Mande-me o Santa-Rita para o demónio. Quanta à ideia das circulares e da publicação das plaquettes – acho-a óptima, dado que se possa realizar... óptima era também a publicação das plaquettes inglesas. Mas se o seu amigo não tem dinheiro... Sempre a eterna humilhação!

– Fez muito bem em registar o nome da revista. Malandros! Malandros Rita, Montalvor & C.ia O caso do brasão sobre o Montalvor é puramente admirável: calino em calendário de desfolhar. Interessou-me muito a história verídica de M. de Montalvor em terras brasileiras.

– Genial a forma de publicar o Arco de Triunfo. Anúncios, muitos anúncios: amostras de papel de Arménia (para defumar) cartões embebidos em perfumes que anunciem, amostras de fazendas até, se possível. Os bónus ideia do Pacheco, admirável.

– O que porém na sua carta me fez mais rir são as últimas notas «Coisas fantásticas»: Sobretudo o Numa-larápio-de-sobretudos-da-Escola-Médica (que complexidade!) e o Ramos pensando na licença antes de ter o emprego. Quanto à sua partida para o estrangeiro está certo: aquela gente sempre confundiu o Carneiro, o Pessoa e o Campos. Não lhe parece?

E eu estou em Paris – fugido: apenas não fugido por sensacionismos... Oxalá assim fora... Termino suplicando mil desculpas por esta carta tão reles em resposta à sua admirável – e pedindo que não descure assunto massas livraria.

Um grande abraço e mil saudades

o seu, seu

Mário de Sá-Carneiro

A carta Santa-Rita lê-se toda com um pequeno esforço. A sua carta ao Santa-Rita, impagável simplesmente!!!!

P. S.

Escrevi ao Santa-Rita pelo mesmo correio o seguinte, em resumo: longe e atravessando demais a minha vida várias perigos (sic) – desinteresso-me por completo da questão do Orfeu, do qual – se ele continuasse – eu seria apenas um colaborador intermitente. Mas isto nada quer dizer pois por mim eu coisa alguma posso decidir. O Orfeu é propriedade espiritual tanto minha como sua. Eu desisti da minha parte: logo hoje o Orfeu é propriedade exclusiva de você, Fernando Pessoa – que se encontra ser assim actualmente o seu único árbitro. Digo-lhe a ruína que é a sua exploração financeira: que se ele «emprestar» dinheiro ao Orfeu, este nunca mais lho pagará... Acrescento que lhe mostre a minha carta. Assim você proceda como entender, à bruta.

– Incite Guisado e Mira à revista, tanto mais que tem dinheiro. Não se esqueça assunto meu dinheiro na livraria!

Mil saudades. Sá-Carneiro

Escusado devolver carta S. Rita.

 
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5674
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre papel liso timbrado ("Café Riche") e papel quadriculado.
Dados de produção
1915 Outubro 2
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Orpheu, Futurismo, Modernismo
Santa-Rita
José Pacheco
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.