Custa-me muito a escrever-lhe esta carta dolorosa – dolorosa para mim e para você. Mas por mim já estou conformado. A dor é pois neste momento sobretudo pela grande tristeza que lhe vou causar. Em duas palavras: temos desgraçadamente de desistir do nosso Orfeu. Todas as razões lhe serão dadas, melhor pela carta do meu Pai que junto incluo e que lhe peço não deixe de ler. Claro que é devida a um momento de exaltação. No entretanto cheia de razões pela conta exorbitante que eu obrigo o meu Pai a pagar – o meu Pai que foi para a África por não ter dinheiro e que lá não ganha sequer para as despesas normais, quase. Compreende que seria abusar de mais, seria exceder a medida mais generosa depois duma conta tipográfica de 560 000 réis, depois da minha fugida para aqui – voltar daqui a três ou quatro meses a pedir-lhe para saldar uma conta de 30 ou 40 000 réis – na melhor das hipóteses – do n.º 3 do Orfeu. Mas não se trata sequer disto: o simples aparecimento do n.º 3 do Orfeu – feito ainda sob a minha responsabilidade (mesmo que eu estivesse certo de tirar toda a despesa) seria na verdade mostrar em demasia ao meu Pai a minha insubordinação. Você, meu querido amigo, tenho a certeza que não obstante o grande dissabor que esta notícia lhe vai causar concorda em que as circunstâncias me inibem absolutamente e assim se conformará e me perdoará. Pena ter criado ilusões, feito com que você falasse a colaboradores etc. Ao meu Pai, de resto, em desculpa eu disse-lhe que do n.º 2 do Orfeu ainda havia dinheiro de que lhe daria contas. Não posso pois de forma alguma dispor dele. O Orfeu mesmo no Lucas custaria decerto 80 000 réis. A venda seria por força menor. Mas isto tudo, repito, é inútil: Eu não posso nas presentes circunstâncias, de forma alguma, continuar com o Orfeu. O meu Pai zangar-se-ia muito se visse aparecer outro n.º, pois suporia sem dúvida – mesmo que assim não fosse – que o teria de pagar. A impossibilidade é pois completa. O meu desgosto é muito grande, você sabe-o perfeitamente. Tanto mais que estava soberbo o sumário muito especialmente pelo seu carácter poliglota. É uma grande pena. Mas que lhe havemos de fazer? Sirva-lhe de consolo, meu querido amigo, o seguinte: que quando saiu o n.º 2 eu lhe disse logo para não contarmos com o 3 – que se este saísse o 4 era impossível sem dúvida – fosse como fosse. A prova maior de franqueza que lhe posso dar é enviando-lhe a carta do meu Pai, carta que recebi no dia 8 deste mês. Leia-a e devolva-ma. Como vê, apesar de tudo, ele consente que eu fique aqui e dá-me no fim de contas o que eu lhe pedi: 250 francos. Você que conhece bem a minha vida sabe as complicações que há por trás disto tudo – vê como o meu Pai é bom para mim. Por isso tanto melhor compreende, estou certo – as minhas razões. Como não há outro remédio senão resignarmo-nos, resignemo-nos. A morte do Orfeu você atribua unicamente a mim, explique que eu em Paris me não quero ocupar do Orfeu – que sou o único culpado. Desculpe-se enfim comigo perante todos quantos lhe perguntarem pela revista. Mais uma vez lhe peço perdão e lhe suplico que não se aflija demasiadamente. Em todo o caso sempre se fizeram dois n.os. Mais vale pouco que nada. Dito isto, que é a razão principal desta carta, passo a responder à sua correspondência ultimamente recebida, ontem e hoje: 2 cartas e um postal. Quero antes de mais nada agradecer-lhe os comentários que faz sobre as minhas fra- ses referentes às dúvidas sobre a minha obra. Defende-se você de, no momento, não estar em disposição de escrever frases belas. Mas, meu querido Amigo, essas linhas são artisticamente obras admiráveis e eu ter-lhas merecido a minha maior glória. Simplesmente genial as «cores que foram gente». Não me envaideci apenas – melhor, esqueci-me até que eram para mim aquelas palavras: e admirei mais uma vez o prodigioso artista. Muito comovidamente lhe agradeço pois. Devo-lhe tanto, tanto, meu querido Fernando Pessoa.