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Fundo
Mário de Sá-Carneiro
Cota
Esp.115/6_42
Imagem
Carta a Fernando Pessoa
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Autor
Sá-Carneiro, Mário de

Identificação

Titulo
Carta a Fernando Pessoa
Titulos atríbuidos
Carta a Fernando Pessoa
Edição / Descrição geral

Carta enviada de Paris, no dia 13 de Setembro de 1915. 

 

 **

Paris – Setembro 1915

Dia 13

Meu Querido Amigo,

 

Custa-me muito a escrever-lhe esta carta dolorosa – dolorosa para mim e para você. Mas por mim já estou conformado. A dor é pois neste momento sobretudo pela grande tristeza que lhe vou causar. Em duas palavras: temos desgraçadamente de desistir do nosso Orfeu. Todas as razões lhe serão dadas, melhor pela carta do meu Pai que junto incluo e que lhe peço não deixe de ler. Claro que é devida a um momento de exaltação. No entretanto cheia de razões pela conta exorbitante que eu obrigo o meu Pai a pagar – o meu Pai que foi para a África por não ter dinheiro e que lá não ganha sequer para as despesas normais, quase. Compreende que seria abusar de mais, seria exceder a medida mais generosa depois duma conta tipográfica de 560 000 réis, depois da minha fugida para aqui – voltar daqui a três ou quatro meses a pedir-lhe para saldar uma conta de 30 ou 40 000 réis – na melhor das hipóteses – do n.º 3 do Orfeu. Mas não se trata sequer disto: o simples aparecimento do n.º 3 do Orfeu – feito ainda sob a minha responsabilidade (mesmo que eu estivesse certo de tirar toda a despesa) seria na verdade mostrar em demasia ao meu Pai a minha insubordinação. Você, meu querido amigo, tenho a certeza que não obstante o grande dissabor que esta notícia lhe vai causar concorda em que as circunstâncias me inibem absolutamente e assim se conformará e me perdoará. Pena ter criado ilusões, feito com que você falasse a colaboradores etc. Ao meu Pai, de resto, em desculpa eu disse-lhe que do n.º 2 do Orfeu ainda havia dinheiro de que lhe daria contas. Não posso pois de forma alguma dispor dele. O Orfeu mesmo no Lucas custaria decerto 80 000 réis. A venda seria por força menor. Mas isto tudo, repito, é inútil: Eu não posso nas presentes circunstâncias, de forma alguma, continuar com o Orfeu. O meu Pai zangar-se-ia muito se visse aparecer outro n.º, pois suporia sem dúvida – mesmo que assim não fosse – que o teria de pagar. A impossibilidade é pois completa. O meu desgosto é muito grande, você sabe-o perfeitamente. Tanto mais que estava soberbo o sumário muito especialmente pelo seu carácter poliglota. É uma grande pena. Mas que lhe havemos de fazer? Sirva-lhe de consolo, meu querido amigo, o seguinte: que quando saiu o n.º 2 eu lhe disse logo para não contarmos com o 3 – que se este saísse o 4 era impossível sem dúvida – fosse como fosse. A prova maior de franqueza que lhe posso dar é enviando-lhe a carta do meu Pai, carta que recebi no dia 8 deste mês. Leia-a e devolva-ma. Como vê, apesar de tudo, ele consente que eu fique aqui e dá-me no fim de contas o que eu lhe pedi: 250 francos. Você que conhece bem a minha vida sabe as complicações que há por trás disto tudo – vê como o meu Pai é bom para mim. Por isso tanto melhor compreende, estou certo – as minhas razões. Como não há outro remédio senão resignarmo-nos, resignemo-nos. A morte do Orfeu você atribua unicamente a mim, explique que eu em Paris me não quero ocupar do Orfeu – que sou o único culpado. Desculpe-se enfim comigo perante todos quantos lhe perguntarem pela revista. Mais uma vez lhe peço perdão e lhe suplico que não se aflija demasiadamente. Em todo o caso sempre se fizeram dois n.os. Mais vale pouco que nada. Dito isto, que é a razão principal desta carta, passo a responder à sua correspondência ultimamente recebida, ontem e hoje: 2 cartas e um postal. Quero antes de mais nada agradecer-lhe os comentários que faz sobre as minhas fra- ses referentes às dúvidas sobre a minha obra. Defende-se você de, no momento, não estar em disposição de escrever frases belas. Mas, meu querido Amigo, essas linhas são artisticamente obras admiráveis e eu ter-lhas merecido a minha maior glória. Simplesmente genial as «cores que foram gente». Não me envaideci apenas – melhor, esqueci-me até que eram para mim aquelas palavras: e admirei mais uma vez o prodigioso artista. Muito comovidamente lhe agradeço pois. Devo-lhe tanto, tanto, meu querido Fernando Pessoa.

– Milhares de razões em tudo quanto diz sobre o camarada Rita-Pintor. Este cavalheiro enviou-me uma carta que... uma carta em como... olhe: raios o partam! Enfim mostrando-se indignado com você, insultando-o até. Insultos dele porém não ofendem. Assim não me importo de lhe dizer. De resto eu parto do princípio que aos nossos grandes amigos não devemos ocultar nunca o que outros dizem deles. Insultos é claro apenas por você lhe ter dito que por enquanto era segredo o n.º 3 do Orfeu, que não havia dinheiro para gravuras, etc. Enfim: ofendido como «dono do Orfeu». A verdade é esta. Vou-lhe escrever uma carta muito seca dizendo-lhe que o Orfeu não se faz – mas, se se fizesse, de facto, não traria gravuras porque nós não queríamos. Se não fossem as impossibilidades juro-lhe que em face da atitude do futurista e da sua carta o Orfeu saía com bonecos, mas do José Pacheco. Isso é que ele rabiava! Infelizmente não nos podemos oferecer esta deliciosa vingança. Se você quiser ver a carta Rítica – como mero documento estou pronto a enviar-lha. Se tiver curiosidade. E repito a justiça benevolente de todas as suas palavras acerca do referido cidadão.

– Espero com muito interesse a sua carta psicológica que lhe rogo não deixe de me enviar.

– O assunto Ferro-Fernando Carvalho é puramente deplorável. Esses meninos são insuportáveis. Ter o aplauso de lepidópteros e democráticos como esses é o pior que nos pode suceder. Veja o que sucedeu às bicicletas: artigo de luxo que, começando a ser empregado pelos democráticos, desapareceu da via pública como sport elegante. A pior recomendação dum produto de luxo é o seu consumo popular. E francamente, para a nossa arte, onde encontrar amadores mais populares que Ferro e Fernandes de Carvalho – para mais na Trafaria Capital dos Pires! Raios os partam – é pois unicamente o meu comentário, afirmando-lhe que, ao invés de você, nenhum escrúpulo tenho em escrever tudo isto e em os mandar para... a Estefânia, a namorar ao lusco-fusco...

– Fico com muito interesse na sua tradução do livro teosofista. Uma religião «interseccionista»! Admirável descoberta!

– Compreendo muito bem que clássicos sejam tocados pela perfeição da sua admirável «Ode Marítima». O outro dia li-a descansadamente sem interrupção – o que ainda não fizera – e além de todas as genialidades, frisou-se-me a perfeição de «linha» construtiva.

[A propósito: o Pacheco conta-me, numa carta ontem recebida que o Bossa lhe disse ter ouvido numa sala uma senhora recitar versos meus!!!!!! Que essa senhora tinha muita admiração pelos meus versos (o que é para agradecer) – e que o auditório ouvira com muito agrado as minhas estrofes (não exageremos em todo o caso ... ).]

– A carta do Teles de Aviz não é chuchadeira. O homenzinho é degenerado sexual (segundo o R. Lopes) e doido, e epiléptico hereditário. De resto basta olhar para ele para concluir logo isto tudo. Julgo assim ter respondido às suas cartas, linha a linha..

– Mandei-lhe há dias um postal com uns versos maus. Vinham bem no Orfeu por causa da quadra do Dantas. Assim inutilizo-os para Os Indícios de Ouro. Mesmo se não os inutilizasse, cortaria a quadra Dantas. Na minha próxima carta enviar-lhe-ei uns outros, melhores, mas pouco melhores. E antes de terminar, meu querido Fernando Pessoa, mais uma vez lhe suplico que atenda bem a todas as minhas razões. Sofremos tantas e tantas contrariedades na vida que esta não é senão mais uma. Sobretudo, por amor de Deus, escreva-me na volta do correio pois eu fico em sobressaltos enquanto não souber como você recebe esta notícia. Repare bem meu amigo na minha situação em face do meu Pai. A única maneira de me desculpar um pouco era dizer que lhe apresentaria o dinheiro do Orfeu 2 – o que farei logo que o receba. Seria exceder a medida continuar. Não me queira mal, pois. Vê a completa impossibilidade. Juro-lhe que o meu desgosto é infinito. Você sabe bem o meu entusiasmo por estas coisas, para o compreender. Mas o meu desgosto agrava-se com a pena que lhe causo. Juro-lhe que não digo isto por simples amabilidade. Peço-lhe que me acredite. E, em nome de tudo, meu querido Fernando Pessoa, não deixe de me responder na volta do correio. Como lhe disse atire todas as culpas para cima de mim. Não tenha escrúpulo nenhum em proceder assim. É a maior fineza que lhe peço. Tudo isto é muito triste, meu querido amigo. Pura miséria! Que destino horrível este de não ter dinheiro. Mas nada podemos fazer. Logo...

Um grande abraço e mil saudades do seu, seu

Mário de Sá-Carneiro

 

Saudades ao Vitoriano. Não o tem visto?

Escreva na volta do correio, por amor de Deus. Não se esqueça. (A devolução da carta do meu Pai não urge.)

 
 
Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5669

Classificação

Categoria
Espólio Documental
Subcategoria
Correspondência

Dados Físicos

Descrição Material
Tinta preta sobre folhas pautadas e sobrescrito.
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
1915 Setembro 13
Notas à data
Inscrita.
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Fernando Pessoa
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Bom
Entidade detentora
Biblioteca Nacional de Portugal
Historial

Palavras chave

Locais
Paris
Palavras chave
Orpheu, Futurismo, Modernismo
Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Exposições
Itens relacionados
Esp.115
Bloco de notas
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.