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Fundo
Mário de Sá-Carneiro
Cota
Esp.115/6_39
Imagem
Carta a Fernando Pessoa
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Autor
Sá-Carneiro, Mário de

Identificação

Titulo
Carta a Fernando Pessoa
Titulos atríbuidos
Carta a Fernando Pessoa
Edição / Descrição geral

Carta enviada de Paris, no dia 30 de Agosto de 1915. 

 

 **

Paris – Agosto 1915

Dia 30

 

Meu Querido Amigo,

 

Recebi hoje o seu postal de 27 que de todo o coração agradeço. Com a mesma ânsia de sempre espero a sua carta projectada para Domingo último (ontem). Oxalá esse projecto não se difundisse... Fico interessadíssimo com o novo filme Álvaro de Campos, engenheiro. E inquieto: não sei se se trata com efeito de mero filme literário (obras) ou de filme de acção. E as acções do Engenheiro Sensacionista por belas e intensas – fazem-me tremer pelo meu caro Fernando Pessoa... Não se esqueça de me contar tudo por miúdos – e na minha insistência quotidiana não deixo de lhe grafar, sublinhadamente mais uma vez a eterna frase: Não deixe de me escrever, por amor de Deus!

De mim: Tão pouco e tanto. Sabe você: eu creio que na verdade há um ano estou um pouco cientificamente doido. Com efeito há no meu espírito coisas que não havia dantes. Esta expressão é de resto um puro idiotismo pois se escrevo o que acima fica é precisamente por não haver no meu espírito coisas que havia dantes. Mas coisas impalpáveis. Isto é muito difícil, senão impossível de explicar. Eu actualmente ando sempre com a alma de estômago vazio mas sem apetite. É assim que, muito longinquamente, posso exprimir talvez o «fenómeno». Estou longe de mim? Não sei. Parece-me melhor que fui tomar banho – e estou há um ano esquecido na tina – por milagre a água não tendo esfriado... De resto, meu querido Fernando Pessoa, eu não tenho culpa nenhuma disto. E por o saber escrever: ora, é claro que estou no meu perfeito juízo. Depois as circunstâncias na minha vida é que têm sido muito mais doidas do que eu. Alguém pode governar o acaso? Suponha você um homem de perfeito juízo, perfeitamente normal quanto a si próprio – mas que na sua vida não encontrasse senão circunstâncias inesperadas, fenomenais, irrisórias, estrambóticas, inexplicáveis – que o envolvessem continuamente? A realidade da vida deste homem seria pois uma realidade destrambelhada, louca. E como essa realidade era a vida desse homem – esse homem, sem culpa nenhuma, de perfeito juízo: não o poderíamos em verdade chamar um doido? Creia que o meu caso é um pouco o deste hipotético figurão. E aqui tem você uma talvez futura novela minha: «Para lá»? Análise psicológica muito pessoal e, sobretudo, da minha crise presente. Receio de endoidecer em verdade. Demonstração que não há esse perigo. Mas olhar em volta – e ver as «circunstâncias», as terríveis circunstâncias positivamente de Rilhafoles... A história seria em diário. Por fim o abandono da luta. Não mais fazer constatações. Deixar entregar-se às circunstâncias. Elas que decidam do seu juízo ou da sua loucura. A última frase será esta, com uma data bastante afastada da penúltima, que indicará esse abando- no de luta: «Por enquanto ainda não houve novidade...»

Eu não sei se você percebeu alguma coisa disto. Estou hoje muito lepidóptero para escrever cartas, você perdoe – e faça por perceber... Outro projecto: uma novela género Prof. Antena (mas muito menos importante). Título: «Pequeno elemento no caso Fabrício». O Fabrício é um homenzinho que de repente se encontra outro, perfeitamente outro. É dado como doido, claro. O fim da novela, a processos Antena, é sugerir uma explicação real para este sarilho. Noutra carta lhe explicarei o assunto. Note que não é nenhum caso de desdobramento à «Eu-Próprio o Outro». Trata-se dum homenzinho que de súbito aparece outro – em alma, claro: ele próprio concorda diante dum espelho que aquele que ele diz ser é louro e gordo: enquanto o espelho lhe reflecte um magro e trigueiro. De resto, meu caro Amigo, esta ideia como as outras pouco me seduz. Estou mesmo num período muito passivo para começar qualquer obra. Mas não é mau que surjam ideias, mesmo fracas, para treino imaginativo. Diga em todo o caso o que pensa de tudo isto. Não se esqueça. Escreva!

Adeus. E um grande, grande abraço do seu
Mário de Sá-Carneiro

P. S. – A novela «Para lá» conterá muitas coisas pelo meio: por exemplo: Fernando Passos [sic] será lá bastante falado – e Paris, a minha quinta etc., etc.

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5666

Classificação

Categoria
Espólio Documental
Subcategoria
Correspondência

Dados Físicos

Descrição Material
Tinta preta sobre folhas lisas e sobrescrito.
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
1915 Agosto 30
Notas à data
Inscrita.
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Fernando Pessoa
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Bom
Entidade detentora
Biblioteca Nacional de Portugal
Historial

Palavras chave

Locais
Paris
Palavras chave
Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Exposições
Itens relacionados
Esp.115
Bloco de notas
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.