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Fundo
Mário de Sá-Carneiro
Cota
Esp.115/6_38
Imagem
Carta a Fernando Pessoa
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Autor
Sá-Carneiro, Mário de

Identificação

Titulo
Carta a Fernando Pessoa
Titulos atríbuidos
Carta a Fernando Pessoa
Edição / Descrição geral

Carta enviada de Paris, no dia 24 de Agosto de 1915. 

 

 **

Paris – Agosto 1915
 
Dia 24

 

Meu Querido Amigo,

 
Esta manhã recebi a sua admirável carta de 13-20 do corrente. Zango-me primeiro que tudo com você, muito, por supor que me pode maçar com a exposição da crise que agita o seu espírito, presentemente.
 

Mas além da honra que a posse dessas páginas me emociona – como é belo e grande e luminoso e perturbador – artisticamente, mesmo: o novelista em mim o garante – tudo quanto o meu querido Fernando Pessoa de si me conta. Sobre a minha impressão – e digo-lhe tudo nela? – Nunca, como lendo as suas páginas hoje recebidas eu compreendi a misteriosa frase do protagonista do «Eu-Próprio o Outro»! «Ter-me-ei volvido uma nação?» Já o ano passado de resto numa carta para aqui foi você o primeiro a aplicar esta frase a si. Mas era, creio, sobretudo pelo aparecimento de Caeiro & C.a – isto é, restritamente: da criação de várias personalidades. Enquanto que eu aplico hoje a frase, sentia-a lendo as suas páginas, não por essas várias personalidades, e o Dr. Mora à frente, criadas: mas, em conjunto, pelo drama que se passa no seu pensamento: e por toda a sua vida intelectual – e até social, que eu conheço. É assim meu querido Fernando Pessoa que se estivéssemos em 1830 e eu fosse H. de Balzac lhe dedicaria um livro da minha Comédia Humana onde você surgiria como o Homem-Nação – o Prometeu que dentro do seu Mundo Interior de génio arrastaria toda uma nacionalidade: uma raça e uma civilização. E é bizarramente este último substantivo que me evoca toda a sua grandeza: «toda uma civilização» é, meu querido Amigo, o que você hoje perturba- doramente se me afigura. São ridículas talvez as frases acima – elas porém exprimem o que eu sinto: que sejam um pouco «rastas» os termos que emprego eles são os que melhor exprimem o que eu quero dizer. E é meditando em páginas como as que hoje recebi – procurando rasgar véus ainda para além delas – que eu verifico a nossa grandeza, mas, perante você, a minha inferioridade. Sim, meu querido amigo – é você a Nação, a Civilização – e eu serei a grande Sala Real, atapetada e multicor – a cetins e a esmeraldas – em douraduras e marchetações. Nem mesmo quereria ser mais... E sê-lo-ei? Vê: tem medo o meu querido Amigo, confia-me, na crise em que ora se debate de se haver enganado: pois para si criar beleza não é tudo, é muito pouco – que «beleza» a ferro e fogo eu juro que você criou. A meus olhos pois o seu medo pode unicamente ser o de haver «criado beleza errada». (Estou certo que não, mesmo assim – é mera hipótese a minha suposição: um dia breve você encontrará a linha que ajustará tudo quanto volteia antagónico no seu espírito e tirará a prova real da sua «razão».) Mas o meu caso é bem mais terrível a certas horas: Para mim basta-me a beleza – e mesmo errada, fundamentalmente erra- da. Mas beleza: beleza retumbante de destaque e brilho, infinita de espelhos, convulsa de mil cores – muito verniz e muito ouro: teatro de mágicas e apoteoses com rodas de fogo e corpos nus. Medo e sonambulismo, destrambelhos sardónicos cascalhando através de tudo. Foi esta a mira da minha obra. Creio tê-la ganho às vezes. Mas a certas horas... E debruço-me então perdido sobre as minhas páginas impressas: não a ver se elas estão «erradas» – pouco importaria – mas a ver se na verdade fascinariam pelos seus lavores coloridos a criança febril que as folheasse: como eu horas esquecidas aos 9 anos passava lendo e relendo Gil Brás de Santilhana: porque a edição era ilustrada com litografias multicores... Certo céu azul duma delas, juro-lhe que nunca o esqueci. E isto não é literatura – será apenas expressão literária duma realidade. E quem me dirá se me enganei ou não? Perturbador enigma... Enfim... Não quero de modo algum profanar a sua carta com mais considerações pessoais. Apenas lhe digo que me emocionou profundamente, que julgo tê-la vibrado e compreendido intimamente. O drama atinge a sua culminância na aparição de duas teorias diferentes – sobre o mesmo caso – e igualmente certas. Seria até o assunto para um drama em romance ou teatro: assunto que por força seduziria Ibsen. Comovidamente «obrigado» portanto pela sua carta de hoje, meu querido Fernando. Suplico-lhe é que nunca deixe de me escrever essas grandes cartas. Se soubesse como me faz bem, como sou feliz lendo-as e respondendo-as. Aqui como em Lisboa – mas aqui mais intimamente – você é o meu único companheiro. Lembre-se pois sempre de mim. Escreva-me muito, muito. Eu farei o mesmo. – Espero muito interessado a sua opinião sobre o que ontem lhe contei da «Novela Romântica». Mas não hesite em dizer-me que não a devo tentar escrever se assim se lhe afigurar. Eu tenho muitas dúvidas, de mais a mais. Que nada o iniba portanto – peço-lhe em nome da sua amizade. (E aproveito a ocasião para agradecer as gentis primeiras linhas da sua carta sobre este capítulo de «amizade». Creia que, da mesma forma, as poderia, eu, ter escrito a você.) Por hoje, nada mais. Francamente não sei como se há-de organizar o Orfeu III... Fale sobre este assunto, e outros mais. Ainda que mínimos.

Adeus. Mil abraços e de toda a alma

do seu, seu

Mário de Sá-Carneiro

 

Um conselho de economia: A sua carta de hoje vinha franqueada com 8 centavos. Mas olhe que me parece bem que não excedia os 20 gramas. E o Estado não nos agradece... Mais abraços o S-C.

Ciente sobre as «7 Canções de Declínio». Vejo que lhe agradaram e isso muito me satisfaz.

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5665

Classificação

Categoria
Espólio Documental
Subcategoria
Correspondência

Dados Físicos

Descrição Material
Tinta preta sobre folhas lisas e sobrescrito.
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
1915 Agosto 24
Notas à data
Inscrita.
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Fernando Pessoa
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Bom
Entidade detentora
Biblioteca Nacional de Portugal
Historial

Palavras chave

Locais
Paris
Palavras chave
Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Exposições
Itens relacionados
Esp.115
Bloco de notas
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.