Mais vale tarde que nunca. E assim venho hoje acusar-lhe a recepção da sua «estimada de 29 p.p.». Com efeito passei hoje no bureau e lá estava a sua missiva! Deu-me muito prazer a sua leitura pois ignorava todas as coisas muito interessantes que nela me diz: Ri sobretudo às bandeiras despregadas com a notícia do Carnet Mondain do D. de N.! Impagável, genial – plena «Petite Semaine» e da melhor. O Santa-Rita Pintor, só por ela, mostra a sua grandeza! Quanto ao sr. João da Neiva (cuja carta desconheço) é, não há dúvida, um pequeno simpático ainda que lepidóptero. Quanto à sua personalidade apenas lhe tenho a dizer isto: seja como for esse nome (sem dúvida pseudónimo) já o li em qualquer parte. Será talvez aquele sr. Barradas Teles de Aviz? É muito presumível. Mas já vi aquele nome, isso é que não há dúvida.
– Pelas coisas que me diz terem saído vejo que se falou bastante do Orfeu – muito sintomático do sucesso a venda pública – logo: como «negócio» – dum panfleto sobre o caso. Embora sem interesse gostava de o ver. Decerto você o arquivou no entretanto. Peço-lhe muito que não descure o rebuscamento dos jornais. O Século Cómico convém examiná-lo sempre. Achei graça ao «Pablo Perez futurista-electricista». O Mourão deve ter publicado um artigo sobre o Orfeu 2 no Jornal de Estremoz. Era conveniente pedir-lho quando o encontrasse bem como o jornal em que ele publicou um artigo sobre o meu livro que me chegou a mostrar. Peço a você que, de minha parte, lho requisite. Você o cortará e colará no caderno do meu arquivo pessoal que está também em seu poder. Fale-me de colaboração literária para o Orfeu 3. Se na verdade como nesta sua carta de 29 você diz se venderam 400 exemplares devo ainda ter a meu favor na livraria um saldo de 30 000 réis – o que me garante decerto a execução do 3.º fascículo da nossa revista nas condições em que lhe falei numa das minhas cartas passadas. Oiça agora o esboço do «cenário» da «Novela Romântica» de que na minha carta de ontem lhe falei. Devo observar-lhe que é apenas ainda um esboço de enredo, um núcleo em volta do qual se virão ajustar muitos detalhes – e presumivelmente até, qualquer pormenor capital. Oiça em todo o caso e diga a sua opinião. Não se esqueça que fundamentalmente é um meu personagem posto a viver em 1830. Quero que haja mesmo anacronismos psicológicos: isto é: pormenores que, por forma alguma, se poderiam suscitar na alma dum homem de 1830. Mas isso muito propositadamente. Assim como que criarei um «romantismo outro» – enfim: um dos meus personagens interseccionistas mascarado de romântico: porque na verdade procede aparentemente como um romântico. Mas a sua psicologia – dentro de toda a fúria ultra-romanesca – fundamentalmente será a dum Lúcio Vaz, Ricardo de Loureiro, Inácio de Gouveia: e mesmo do velado protagonista da «Grande Sombra». Observação muito importante: o estilo será o meu – e daqui virá o principal anacronismo – estilo pois interseccionista mas misturado de romantismo na sua chama, na sua violência abrasadora de «infernos», «céus», etc. Como o Antony. Parece-me qualquer coisa de interessante esta tentativa: Dando-nos uma impressão estrambótica, desconchavada, mas perturbadora e bela. Creio conseguir tirar belos efeitos deste plano: uma intersecção afinal: da alma e estilo romântico: com a alma e estilo interseccionistas. Pese bem tudo isto – e não se esqueça de largamente me dizer o que pensa. Aí vai agora o arcaboiço da novela: Heitor de Santa-Eulália brincou na sua infância com sua prima – Branca de Ataíde, suponhamos. Foram companheiros quotidianos até aos 15 anos mesmo. Depois a vida separou-os. Heitor nunca teve por sua prima senão um afecto fraternal – sem «arrière-pen- sée» alguma – sem lembranças de ternura amorosa por mínimas que fossem! Passados 10 anos, Heitor regressa a Portugal depois duma longa viagem pela América. Traz o prestígio de corredor de mundo, distingui- do em perigos e façanhas – e o maior prestígio dum volume de versos escaldantes que acaba de publicar com grande ruído (suponha as Folhas Caídas do Garrett). Heitor chega e aloja-se no palácio senhorial dos arredores de Lisboa onde passa o verão sua irmã que casou com um irmão de Branca – que, por seu turno, é também hoje casada. Foi nessa quinta, que Heitor e Branca correram, brincaram juntos noutros tempos. Pois bem: Heitor chega – e de súbito, ao ver sua prima nasce-lhe por ela uma paixão sem remédio (daquelas célebres paixões românticas que fariam um Alberto Savarus (novela de Balzac) lutar toda a sua vida por uma mulher que apenas olhou logo e ficou amando sem salvação; que trariam um Antony da América depois de, para a sua amada, ter ganho uma fortuna, etc. Mas esta paixão é despertada intimamente (e aparece agora aqui o «meu personagem») pela súbita recordação da infância: pelas ruas do parque, os lagos, as clareiras – tanta ternura – onde se desenrolou a sua infância. É pois realmente dessa ternura acumulada subitamente revista (isto é: do cenário) que nasce a paixão pela figura que animou essa paisagem: Branca – paixão porém que surge exclusivamente à moda romântica, e à moda romântica se vai desenvolvendo. Os dias seguem. Coloca-se aqui num capítulo o desenvolvimento do amor: descrições dos cenários românticos da quinta, os longos passeios dos dois amorosos, as noites de luar, etc. Branca compartilha decerto da paixão de seu primo. E uma noite é ela própria que audaciosamente (como a Suzon de Alfredo de Musset) se lhe vem entregar. Heitor ruge de glória estreitando-a meia nua... Prestes a enlaçá-la, a possuí-la toda sobre o grande leito – detém-se de súbito – lança-se a seus pés chorando... Não! não! é preciso terem a força de se separarem! Branca é toda um passado de pureza – é toda a ternura cariciosa e ingénua duma infância feliz, dum passado cor-de-rosa e arminhos. Se ele a vai poluir, todo o seu passado se poluirá também. Só agora descobriu o seu amor – mas esse amor existia já – irremediavelmente o acredita – quando de mãos dadas os dois, afogueados, corriam pelas ruas da quinta pre- cedidos dos galgos brancos, «tão brancos e tão esguios como a pureza e a brevidade dessas horas venturosas, rescendendo lilás». Apenas os seus olhos estavam vendados. E por muito belo que possa ser o presente, na posse – no passado foram as mais belas horas do seu amor! Só hoje o reconhece. Mas é indubitavelmente assim. E essas horas foram as mais belas do seu amor – justamente por terem sido assim: brancas, ingénuas, e desconhecidas: pois não sabiam então que se amavam. A posse no adultério, na infâmia: o adultério de Branca consumado com ele, seriam derrocada desse passado todo. Assim é preciso ter força para não perder a riqueza passada hoje descoberta! Ah! mas a esse passado ele será sempre fiel! Nunca terá fim o seu amor por Branca. Nunca. Desafia Deus e o Demónio a que alguma vez ele se esvaia... Sua prima ouve-o pasmada, enlevada no encanto das suas palavras mas, ao mesmo tempo, com medo. O seu cérebro pequenino não pode compreender todas aquelas complicações. Mas enfim acha bem. E aturdida – no fundo quem sabe se despeitada – retira-se... Passado pouco tempo Heitor de Santa-Eulália parte para Paris, sem tenção de voltar. É aí que vai viver o seu amor: e arrastá-lo numa vida tumultuosa de festa e orgia para melhor provar a força da sua paixão aos seus próprios olhos. Sim num contínuo turbilhão, atravessado sobre o corpo de mil mulheres – ele terá sempre na sua alma a sua paixão suprema: a razão única da sua vida. É o místico que, por assim dizer, provoca mil tentações, lê os livros da negação da sua doutrina – e através de tudo prossegue firme, inalterável na sua fé. Colocam-se aqui descrições do Paris romântico (mas do Paris romântico visto e sentido pelos meus olhos, hoje). Heitor escreverá no seu diário que tudo se lhe volveu teatral etc. e falando da beleza e da glória que sente em viver o período romântico lembrar-se-á da saudade que um artista do período das máquinas, do próximo século, deverá sentir dessa época passada onde ele nunca viveu.
– Beijará as mãos que Branca a seu pedido antes de se separarem cobriu de beijos.
– Terá obsessões à minha maneira etc. Compreende bem, não é verdade? Um Lúcio coado por romantismo, movido por processos românticos, direi talvez melhor. Para encurtar: Heitor vê-se porém finalmente vivendo um episódio mágico em Paris – um episódio de amor: surge um novo personagem feminino na sua vida e pouco a pouco ele vai descobrindo que todo o seu amor passado desapareceu. Não, já não ama Branca. Agora ama só a Outra – e ama a outra como nunca amou Branca. Sabe-o positivamente. E como o sabe irremediavelmente, por isso mesmo, dispara-se um tiro de pistola. Assim nem Deus se pôde antepor no seu caminho. E – ó sacrifício sem nome, sacrifício novo! – a sua vida e o seu amor dá-os àquela que já não ama, pelo menos àquela que nunca amou como ama hoje a outra. Mas ter a força de o fazer não será inverter tudo?... Perturbadora dúvida... Aqui está, meu querido Fernando Pessoa o sarilho... diga você a sua opinião. Bem sei que tudo isto é incoerente e exagerado. Mas esse exagero e essa incoerência são justamente os materiais que eu pretendo que dêem a beleza ao conjunto. É claro que nesta parte de Paris surgirão vários episódios classicamente românticos: um duelo com um Príncipe Polaco que depois será o confidente de Heitor etc. E o segundo amor aparecerá também num enredo complicado e bizarro que não sei ainda qual seja. (A verdade psicológica da história não será grande bem sei: mas não se esqueça que Heitor é um dos meus personagens.) Leia tudo isto com atenção meditando um pouco para além das minhas palavras e diga-me com segurança se isto tem o grau de interesse necessário para que eu o escreva. Fico ansioso pela sua resposta. Antes de saber a sua opinião não começarei a trabalhar nisto – que deverá ser uma obra longa. Peço-lhe pois muito que me diga o que pensa circunstanciada e meditadamente. E brevemente também. Adeus meu querido Fernando Pessoa. Perdoe-me tanta maçada. Mil abraços.