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Fundo
Mário de Sá-Carneiro
Cota
Esp.115/6_37
Imagem
Carta a Fernando Pessoa
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Autor
Sá-Carneiro, Mário de

Identificação

Titulo
Carta a Fernando Pessoa
Titulos atríbuidos
Carta a Fernando Pessoa
Edição / Descrição geral

Carta enviada de Paris, no dia 23 de Agosto de 1915. 

 

 **

Paris – Agosto 1915

Dia 23

 

Meu Querido Amigo,

Mais vale tarde que nunca. E assim venho hoje acusar-lhe a recepção da sua «estimada de 29 p.p.». Com efeito passei hoje no bureau e lá estava a sua missiva! Deu-me muito prazer a sua leitura pois ignorava todas as coisas muito interessantes que nela me diz: Ri sobretudo às bandeiras despregadas com a notícia do Carnet Mondain do D. de N.! Impagável, genial – plena «Petite Semaine» e da melhor. O Santa-Rita Pintor, só por ela, mostra a sua grandeza! Quanto ao sr. João da Neiva (cuja carta desconheço) é, não há dúvida, um pequeno simpático ainda que lepidóptero. Quanto à sua personalidade apenas lhe tenho a dizer isto: seja como for esse nome (sem dúvida pseudónimo) já o li em qualquer parte. Será talvez aquele sr. Barradas Teles de Aviz? É muito presumível. Mas já vi aquele nome, isso é que não há dúvida.

– Pelas coisas que me diz terem saído vejo que se falou bastante do Orfeu – muito sintomático do sucesso a venda pública – logo: como «negócio» – dum panfleto sobre o caso. Embora sem interesse gostava de o ver. Decerto você o arquivou no entretanto. Peço-lhe muito que não descure o rebuscamento dos jornais. O Século Cómico convém examiná-lo sempre. Achei graça ao «Pablo Perez futurista-electricista». O Mourão deve ter publicado um artigo sobre o Orfeu 2 no Jornal de Estremoz. Era conveniente pedir-lho quando o encontrasse bem como o jornal em que ele publicou um artigo sobre o meu livro que me chegou a mostrar. Peço a você que, de minha parte, lho requisite. Você o cortará e colará no caderno do meu arquivo pessoal que está também em seu poder. Fale-me de colaboração literária para o Orfeu 3. Se na verdade como nesta sua carta de 29 você diz se venderam 400 exemplares devo ainda ter a meu favor na livraria um saldo de 30 000 réis – o que me garante decerto a execução do 3.º fascículo da nossa revista nas condições em que lhe falei numa das minhas cartas passadas. Oiça agora o esboço do «cenário» da «Novela Romântica» de que na minha carta de ontem lhe falei. Devo observar-lhe que é apenas ainda um esboço de enredo, um núcleo em volta do qual se virão ajustar muitos detalhes – e presumivelmente até, qualquer pormenor capital. Oiça em todo o caso e diga a sua opinião. Não se esqueça que fundamentalmente é um meu personagem posto a viver em 1830. Quero que haja mesmo anacronismos psicológicos: isto é: pormenores que, por forma alguma, se poderiam suscitar na alma dum homem de 1830. Mas isso muito propositadamente. Assim como que criarei um «romantismo outro» – enfim: um dos meus personagens interseccionistas mascarado de romântico: porque na verdade procede aparentemente como um romântico. Mas a sua psicologia – dentro de toda a fúria ultra-romanesca – fundamentalmente será a dum Lúcio Vaz, Ricardo de Loureiro, Inácio de Gouveia: e mesmo do velado protagonista da «Grande Sombra». Observação muito importante: o estilo será o meu – e daqui virá o principal anacronismo – estilo pois interseccionista mas misturado de romantismo na sua chama, na sua violência abrasadora de «infernos», «céus», etc. Como o Antony. Parece-me qualquer coisa de interessante esta tentativa: Dando-nos uma impressão estrambótica, desconchavada, mas perturbadora e bela. Creio conseguir tirar belos efeitos deste plano: uma intersecção afinal: da alma e estilo romântico: com a alma e estilo interseccionistas. Pese bem tudo isto – e não se esqueça de largamente me dizer o que pensa. Aí vai agora o arcaboiço da novela: Heitor de Santa-Eulália brincou na sua infância com sua prima – Branca de Ataíde, suponhamos. Foram companheiros quotidianos até aos 15 anos mesmo. Depois a vida separou-os. Heitor nunca teve por sua prima senão um afecto fraternal – sem «arrière-pen- sée» alguma – sem lembranças de ternura amorosa por mínimas que fossem! Passados 10 anos, Heitor regressa a Portugal depois duma longa viagem pela América. Traz o prestígio de corredor de mundo, distingui- do em perigos e façanhas – e o maior prestígio dum volume de versos escaldantes que acaba de publicar com grande ruído (suponha as Folhas Caídas do Garrett). Heitor chega e aloja-se no palácio senhorial dos arredores de Lisboa onde passa o verão sua irmã que casou com um irmão de Branca – que, por seu turno, é também hoje casada. Foi nessa quinta, que Heitor e Branca correram, brincaram juntos noutros tempos. Pois bem: Heitor chega – e de súbito, ao ver sua prima nasce-lhe por ela uma paixão sem remédio (daquelas célebres paixões românticas que fariam um Alberto Savarus (novela de Balzac) lutar toda a sua vida por uma mulher que apenas olhou logo e ficou amando sem salvação; que trariam um Antony da América depois de, para a sua amada, ter ganho uma fortuna, etc. Mas esta paixão é despertada intimamente (e aparece agora aqui o «meu personagem») pela súbita recordação da infância: pelas ruas do parque, os lagos, as clareiras – tanta ternura – onde se desenrolou a sua infância. É pois realmente dessa ternura acumulada subitamente revista (isto é: do cenário) que nasce a paixão pela figura que animou essa paisagem: Branca – paixão porém que surge exclusivamente à moda romântica, e à moda romântica se vai desenvolvendo. Os dias seguem. Coloca-se aqui num capítulo o desenvolvimento do amor: descrições dos cenários românticos da quinta, os longos passeios dos dois amorosos, as noites de luar, etc. Branca compartilha decerto da paixão de seu primo. E uma noite é ela própria que audaciosamente (como a Suzon de Alfredo de Musset) se lhe vem entregar. Heitor ruge de glória estreitando-a meia nua... Prestes a enlaçá-la, a possuí-la toda sobre o grande leito – detém-se de súbito – lança-se a seus pés chorando... Não! não! é preciso terem a força de se separarem! Branca é toda um passado de pureza – é toda a ternura cariciosa e ingénua duma infância feliz, dum passado cor-de-rosa e arminhos. Se ele a vai poluir, todo o seu passado se poluirá também. Só agora descobriu o seu amor – mas esse amor existia já – irremediavelmente o acredita – quando de mãos dadas os dois, afogueados, corriam pelas ruas da quinta pre- cedidos dos galgos brancos, «tão brancos e tão esguios como a pureza e a brevidade dessas horas venturosas, rescendendo lilás». Apenas os seus olhos estavam vendados. E por muito belo que possa ser o presente, na posse – no passado foram as mais belas horas do seu amor! Só hoje o reconhece. Mas é indubitavelmente assim. E essas horas foram as mais belas do seu amor – justamente por terem sido assim: brancas, ingénuas, e desconhecidas: pois não sabiam então que se amavam. A posse no adultério, na infâmia: o adultério de Branca consumado com ele, seriam derrocada desse passado todo. Assim é preciso ter força para não perder a riqueza passada hoje descoberta! Ah! mas a esse passado ele será sempre fiel! Nunca terá fim o seu amor por Branca. Nunca. Desafia Deus e o Demónio a que alguma vez ele se esvaia... Sua prima ouve-o pasmada, enlevada no encanto das suas palavras mas, ao mesmo tempo, com medo. O seu cérebro pequenino não pode compreender todas aquelas complicações. Mas enfim acha bem. E aturdida – no fundo quem sabe se despeitada – retira-se... Passado pouco tempo Heitor de Santa-Eulália parte para Paris, sem tenção de voltar. É aí que vai viver o seu amor: e arrastá-lo numa vida tumultuosa de festa e orgia para melhor provar a força da sua paixão aos seus próprios olhos. Sim num contínuo turbilhão, atravessado sobre o corpo de mil mulheres – ele terá sempre na sua alma a sua paixão suprema: a razão única da sua vida. É o místico que, por assim dizer, provoca mil tentações, lê os livros da negação da sua doutrina – e através de tudo prossegue firme, inalterável na sua fé. Colocam-se aqui descrições do Paris romântico (mas do Paris romântico visto e sentido pelos meus olhos, hoje). Heitor escreverá no seu diário que tudo se lhe volveu teatral etc. e falando da beleza e da glória que sente em viver o período romântico lembrar-se-á da saudade que um artista do período das máquinas, do próximo século, deverá sentir dessa época passada onde ele nunca viveu.

– Beijará as mãos que Branca a seu pedido antes de se separarem cobriu de beijos.

– Terá obsessões à minha maneira etc. Compreende bem, não é verdade? Um Lúcio coado por romantismo, movido por processos românticos, direi talvez melhor. Para encurtar: Heitor vê-se porém finalmente vivendo um episódio mágico em Paris – um episódio de amor: surge um novo personagem feminino na sua vida e pouco a pouco ele vai descobrindo que todo o seu amor passado desapareceu. Não, já não ama Branca. Agora ama só a Outra – e ama a outra como nunca amou Branca. Sabe-o positivamente. E como o sabe irremediavelmente, por isso mesmo, dispara-se um tiro de pistola. Assim nem Deus se pôde antepor no seu caminho. E – ó sacrifício sem nome, sacrifício novo! – a sua vida e o seu amor dá-os àquela que já não ama, pelo menos àquela que nunca amou como ama hoje a outra. Mas ter a força de o fazer não será inverter tudo?... Perturbadora dúvida... Aqui está, meu querido Fernando Pessoa o sarilho... diga você a sua opinião. Bem sei que tudo isto é incoerente e exagerado. Mas esse exagero e essa incoerência são justamente os materiais que eu pretendo que dêem a beleza ao conjunto. É claro que nesta parte de Paris surgirão vários episódios classicamente românticos: um duelo com um Príncipe Polaco que depois será o confidente de Heitor etc. E o segundo amor aparecerá também num enredo complicado e bizarro que não sei ainda qual seja. (A verdade psicológica da história não será grande bem sei: mas não se esqueça que Heitor é um dos meus personagens.) Leia tudo isto com atenção meditando um pouco para além das minhas palavras e diga-me com segurança se isto tem o grau de interesse necessário para que eu o escreva. Fico ansioso pela sua resposta. Antes de saber a sua opinião não começarei a trabalhar nisto – que deverá ser uma obra longa. Peço-lhe pois muito que me diga o que pensa circunstanciada e meditadamente. E brevemente também. Adeus meu querido Fernando Pessoa. Perdoe-me tanta maçada. Mil abraços.

o seu, seu

Mário de Sá-Carneiro

 

A minha carta de ontem deve você recebê-la juntamente com esta pois seguiu para o correio às 11 horas da noite.

Recebi o seu postal de 19. Vamos a ver quando chega a sua carta! O meu endereço é público, pode dizê-lo a quem entender (menos à Tipografia do Comércio). Não estou assustado pela astrologia. Escreva!

P. S. – De Branca quase se não falará mais após a partida de Heitor. Mas vagamente sugerir-se-á que tem tido vários amantes... Heitor sabê-lo-á mesmo, quase.

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5664

Classificação

Categoria
Espólio Documental
Subcategoria
Correspondência

Dados Físicos

Descrição Material
Tinta preta sobre folha quadriculada e sobrescrito.
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
1915 Agosto 23
Notas à data
Inscrita.
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Fernando Pessoa
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Bom
Entidade detentora
Biblioteca Nacional de Portugal
Historial

Palavras chave

Locais
Paris
Palavras chave
Orpheu, Futurismo, Modernismo
Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Exposições
Itens relacionados
Esp.115
Bloco de notas
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.