Recebi hoje o seu postal de 18 que muito agradeço. Amanhã irei ao Bureau dos Italianos ver se ainda lá encontrarei a sua carta de 29 p. p. Com efeito quando em 29 R. Victor Massé recebi a sua primeira corres- pondência julguei por uma frase onde você aludia à complicação do endereço posta-restante e às desculpas de não ter escrito – que, em verdade nunca houvesse escrito para o bureau e assim por lá nunca mais passei a indagar. Veremos se amanhã consigo obter a sua carta. Mas parece-me já tarde. Que pena! Ansioso fico esperando a sua carta-relatório. Oxalá ela não demore muito. – Ontem enviei-lhe um postal queixando-me já do seu silêncio. Perdoe-me. Mas se você soubesse como as suas cartas me são necessárias! É que você, meu querido Fernando Pessoa, é, em verdade completa, o meu único camarada. E longe sinto-o melhor – e longe, tendo cartas suas, essa camaradagem parece-me talvez mais estreita, mais próxima. Seguramente a época da minha vida em que vivi mais ao lado do meu Pai – foi no ano em que estive em Paris e nos escrevíamos todos os dias. – Belas saudades dessa época! Tanta glória! Paris revelado – tão mais belo, por novo – e surpresa! Depois o meu espírito que se desvendava – as minhas obras que se projectavam – tanta perspectiva em minha face! Dois anos só – e tão longe... tão longe... Que vontade de chorar, meu querido amigo. Escreva-me então muito, sim? – Recebi já dinheiro do meu Pai, de Lourenço Marques: 250 francos, que foi o que eu lhe pedi para me dar por mês. Isto parece indicar que concorda na minha permanência aqui. Entretanto receio que surjam complicações. Vamos a ver. Nada sei pois ainda ao certo. Mas antes de um mês não sairei daqui. Podemos, pelo menos, contar com isso... (O meu Pai apenas me mandou o dinheiro telegraficamente – mas por intermédio dos bancos, sem juntar nenhuma resposta – o que se compreende pelo preço elevadíssimo das palavras: do envio porém justamente da soma mensal que lhe pedi concluo o seu assentimento. Mas vamos a ver as complicações) – Mais de mim: Sabe você, muito pouco. Entretanto seria feliz, que[r] ver como: se me dessem a garantia de nunca mais sair daqui, tal e qual como estou – mesmo até numa ordem de prisão que me estabelecesse o termo de Paris como residência. Figurei-me outro dia num café que era assim tal e qual – e senti-me feliz: Vida solitária, sem conhecer ninguém e sem acidentes, parada de alma e corpo. Mas garantida. Depois de escrever mais dois ou três volumes seria até um fim de vida muito belo. Que nunca mais se soubesse de mim... Que vivia entanto, e estava em Paris. Aonde? Perdido. Solitário e pelos cafés baratos. Mas esta mesma tristeza é ilusão. E a minha vida seguirá à tona de rios que sejam ora travessas ora becos sem saída – mas, vamos lá, tenhamos ainda essa esperança – d’água limpa... Parece-me em todo o caso que a minha alma, definitivamente, fugiu pela Torre Eiffel acima... (Ao Franco escrevi ontem que ela não era hoje mais do que uma bexiga de Carnaval, estoirada...) Apesar de tudo, cá ando... E com tanta vontade de me segurar... Na minha 1.a carta lhe direi um novo projecto literário de novela: «Novela Romântica». Coisa esquisita: suponha você um Lúcio, um Inácio de Gouveia – enfim um dos meus personagens-padrões lançado em pleno período romântico, vivendo um enredo ultra-romântico: um Antony interseccionista, numa palavra. Na minha próxima carta lhe falarei largamente da história – que, esta, me parece que vou escrever – pela sedução do cenário e do ambiente. Adeus meu querido Fernando Pessoa. Não se esqueça de mim.
Um grande, grande Abraço.