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Fundo
Mário de Sá-Carneiro
Cota
Esp.115/6_21
Imagem
Carta a Fernando Pessoa
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Autor
Sá-Carneiro, Mário de

Identificação

Titulo
Carta a Fernando Pessoa
Titulos atríbuidos
Carta a Fernando Pessoa
Edição / Descrição geral

Carta enviada de Lisboa, no dia 17 de Julho de 1915. 

 

 **

 Aviso Importante! esta carta saiu literariamente muito lepidóptera.
 
 

Paris – julho 1915

Dia 17

 

Meu Querido Amigo,

Venho lembrar-lhe tudo quanto lhe disse na minha carta de ontem, recomendar-lhe muito que se não esqueça de passar na livraria para falar sobre o Céu em Fogo a fim de eu saber de certeza se posso contar com o dinheiro dessa venda até 8 de agosto efectivamente. Rogo-lhe também que me escreva com a maior brevidade uma das suas cartas-relatório falando-me sobretudo do Orfeu – e outras tricas literárias. O Leal circula ainda? O Santa-Rita Pintor tem aparecido por Lisboa? Etc., etc. E é verdade o Afonso Costa afinal morreu ou não? Em S. Sebastian chegou um jornal a dedicar o seu artigo de fundo ao grande estadista morto. Todos os jornais espanhóis – e os franceses – noticiaram com efeito a morte do tribuno no dia 14.

Mas já li aqui no Matin ou no Journal (só num deles,) um desmentido. Logo... Preocupei-me de resto com a morte do Afonso pela sua Vida, meu caro Fernando Álvaro Pessoa de Campos.

Paris, então. Ah! uma glória – outra glória – outra maravilha. Maravilha que, de resto, para ser vibrada em todo o seu oiro necessita de influenciar alguém que tivesse conhecido a Cidade em plena paz. É a mesma – mas em febre amortecida. Dir-se-ia que mão fantástica fechou um pouco o registo regulador do movimento-total, da «corda» que faz mover, em relojoaria, Paris inteiro. Juro-lhe que desde o próprio barulho dos automóveis deslizando nas ruas – e as suas buzinas – até aos timbres eléctricos chamarizes dos animatógrafos e mais baiúcas, tudo se atenuou, esmaeceu, velou, diluiu – mas permaneceu em encanto – mais penetrante hoje por subtilizado, imponderalizado, cendrado – mas simultaneamente febrilizado em novas crispações. Não sei explicar-lhe o que quisera. Mas enfim, suponha isto – tal e qual: uma grande cidade, as cidades da minha ânsia e dos meus livros – rútilas de Europa, largas, pejadas de trânsito e movimentos – rendez-vous cosmopolitas, farfalhantes de acção. Pois bem: suponha que assim como o guarda-freio dum eléctrico, o chauffeur ao volante dum automóvel podem acelerar ou diminuir a velocidade do seu veículo – e como também uma torneira permite que aumentemos o jorro dum repuxo a meio dum lago – seria lícito por qualquer mecanismo de sonho fazer o mesmo a toda a actividade múltipla e diversa da grande Capital. Sim suponha isso possível. Suponha-se fechando-abrindo esse regulador. E aqui tem a mudança toda de Paris – tão real, mas tão enigmática e perturbadora na sua realidade diminuída. Pois em resumo assim é: Paris, diminuído em grandeza, desconhecidamente ungiu-se de oculto, diluiu-se em incerto. Tanto maior o seu quebranto – que se estiliza em mágica intensidade, à noite – vincadamente. Lembra-se do «Homem dos Sonhos», o meu conto? Pois hoje Paris, à noite – é a cidade que ele viajava em sonhos: ela própria: na treva impenetrável, toda a vida. E rasgam-se os boulevards, em verdade, numa ideia só ascendente – e desliza a vida: rolam os automóveis, os trens – deslizam nos largos passeios de asfalto citadino a multidão dos transeuntes. E com efeito também todo este silêncio se reúne em música: não realmente em música mas na ideia duma melodia impossível que não se ouvisse, e fosse apenas um bafo: um hálito inconstante, perfumado em espasmo – que nós aspirássemos como se o ouvíssemos em harmonia. Com efeito no medo futurista dos grandes dirigíveis imperiais e agudos – só raros, raríssimos candeeiros de gás são acesos. A ponto que é difícil transitar, ir com muita cautela no perigo até de entropeçar. Fulguram a apoteotizar todo o ambiente velado, se não há nuvens, as estrelas que se diriam de papel prateado sobre uma toga negra de mágica nos teatros, de milionários. E a multidão desliza. Deve haver beijos nos recantos – e estiletes porventura se cruzarão remotamente nas esquinas mais solitárias. Enfim, é o mistério empres-tado a todas as coisas – a cidade toda vivendo nas trevas impenetráveis. E mais se frisa então a impressão de incrédulo, de duvidoso e fugitivo, num calafrio remoto o intranquilo que mais nimba arrepiando-as as sensações diluídas, de excitação agora – esquivamente. Dir-se-ia uma cidade furtiva, em suma, meu querido amigo: uma cidade fora do espaço e do tempo: existindo às escuras – colónia astral, talvez de criminosos... Não sei... Mas todas estas bizarrias interseccionistas me impressiona Paris de hoje. Perdoe toda esta péssima literatura. Sabe? São apenas fugitivos apontamentos: até esboços de apontamentos – para algumas páginas que presumível e futuramente escreverei. Uma crónica. Mas uma crónica paulica. É verdade: e se eu desenvolvesse tudo isto e o ajustasse para o n.º 3 do Orfeu? Como crónica, evidentemente. Que se lhe afigura que eu posso tirar daqui? Qualquer coisa interessante. Diga. E não se fie só no que lhe digo. Há muitos outros vértices. Escreva. Por amor de Deus. E não se esqueça das minhas incumbências e de contar o que lhe disser o Augusto. Um grande abraço e um grande adeus.

o seu, muito seu

Mário de Sá-Carneiro

 

Poste Restante Bureau des Italiens Paris

 

 
Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5585

Classificação

Categoria
Espólio Documental
Subcategoria
Correspondência

Dados Físicos

Descrição Material
Tinta preta sobre folhas quadriculadas e sobrescrito.
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
1915 Julho 17
Notas à data
Inscrita.
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Fernando Pessoa
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Bom
Entidade detentora
Biblioteca Nacional de Portugal
Historial

Palavras chave

Locais
Paris, San Sebastian
Palavras chave
Futurismo, Modernismo, Paúlismo
Nomes relacionados
Matin
Journal
Afonso Costa
Álvaro de Campos
Santa-Rita
Orpheu

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Exposições
Itens relacionados
Esp.115
Bloco de notas
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.