Paris, então. Ah! uma glória – outra glória – outra maravilha. Maravilha que, de resto, para ser vibrada em todo o seu oiro necessita de influenciar alguém que tivesse conhecido a Cidade em plena paz. É a mesma – mas em febre amortecida. Dir-se-ia que mão fantástica fechou um pouco o registo regulador do movimento-total, da «corda» que faz mover, em relojoaria, Paris inteiro. Juro-lhe que desde o próprio barulho dos automóveis deslizando nas ruas – e as suas buzinas – até aos timbres eléctricos chamarizes dos animatógrafos e mais baiúcas, tudo se atenuou, esmaeceu, velou, diluiu – mas permaneceu em encanto – mais penetrante hoje por subtilizado, imponderalizado, cendrado – mas simultaneamente febrilizado em novas crispações. Não sei explicar-lhe o que quisera. Mas enfim, suponha isto – tal e qual: uma grande cidade, as cidades da minha ânsia e dos meus livros – rútilas de Europa, largas, pejadas de trânsito e movimentos – rendez-vous cosmopolitas, farfalhantes de acção. Pois bem: suponha que assim como o guarda-freio dum eléctrico, o chauffeur ao volante dum automóvel podem acelerar ou diminuir a velocidade do seu veículo – e como também uma torneira permite que aumentemos o jorro dum repuxo a meio dum lago – seria lícito por qualquer mecanismo de sonho fazer o mesmo a toda a actividade múltipla e diversa da grande Capital. Sim suponha isso possível. Suponha-se fechando-abrindo esse regulador. E aqui tem a mudança toda de Paris – tão real, mas tão enigmática e perturbadora na sua realidade diminuída. Pois em resumo assim é: Paris, diminuído em grandeza, desconhecidamente ungiu-se de oculto, diluiu-se em incerto. Tanto maior o seu quebranto – que se estiliza em mágica intensidade, à noite – vincadamente. Lembra-se do «Homem dos Sonhos», o meu conto? Pois hoje Paris, à noite – é a cidade que ele viajava em sonhos: ela própria: na treva impenetrável, toda a vida. E rasgam-se os boulevards, em verdade, numa ideia só ascendente – e desliza a vida: rolam os automóveis, os trens – deslizam nos largos passeios de asfalto citadino a multidão dos transeuntes. E com efeito também todo este silêncio se reúne em música: não realmente em música mas na ideia duma melodia impossível que não se ouvisse, e fosse apenas um bafo: um hálito inconstante, perfumado em espasmo – que nós aspirássemos como se o ouvíssemos em harmonia. Com efeito no medo futurista dos grandes dirigíveis imperiais e agudos – só raros, raríssimos candeeiros de gás são acesos. A ponto que é difícil transitar, ir com muita cautela no perigo até de entropeçar. Fulguram a apoteotizar todo o ambiente velado, se não há nuvens, as estrelas que se diriam de papel prateado sobre uma toga negra de mágica nos teatros, de milionários. E a multidão desliza. Deve haver beijos nos recantos – e estiletes porventura se cruzarão remotamente nas esquinas mais solitárias. Enfim, é o mistério empres-tado a todas as coisas – a cidade toda vivendo nas trevas impenetráveis. E mais se frisa então a impressão de incrédulo, de duvidoso e fugitivo, num calafrio remoto o intranquilo que mais nimba arrepiando-as as sensações diluídas, de excitação agora – esquivamente. Dir-se-ia uma cidade furtiva, em suma, meu querido amigo: uma cidade fora do espaço e do tempo: existindo às escuras – colónia astral, talvez de criminosos... Não sei... Mas todas estas bizarrias interseccionistas me impressiona Paris de hoje. Perdoe toda esta péssima literatura. Sabe? São apenas fugitivos apontamentos: até esboços de apontamentos – para algumas páginas que presumível e futuramente escreverei. Uma crónica. Mas uma crónica paulica. É verdade: e se eu desenvolvesse tudo isto e o ajustasse para o n.º 3 do Orfeu? Como crónica, evidentemente. Que se lhe afigura que eu posso tirar daqui? Qualquer coisa interessante. Diga. E não se fie só no que lhe digo. Há muitos outros vértices. Escreva. Por amor de Deus. E não se esqueça das minhas incumbências e de contar o que lhe disser o Augusto. Um grande abraço e um grande adeus.