Virtual Archive of the Orpheu Generation

Mário de Sá-Carneiro

The Virtual Archive of Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), modernist poet, includes his correspondence, notebooks, manuscripts and published work during his lifetime. Most of these documents were gathered by François Castex, French intellectual, and are kept at the National Library of Portugal. Also included here are letters sent by the author to his great friend Fernando Pessoa.

The full documents can be found in the 'PDF' box and the manuscripts have been transcribed in the 'Edition' box. 

 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/5_9
Esp.115/5_9
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Paris, no dia 20 de Junho de 1914. 

 

 **

Paris 20 junho 1914

 

Meu Querido Fernando Pessoa,

Não sei em verdade como dizer-lhe todo o meu entusiasmo pela ode do Álvaro de Campos que ontem recebi. É uma coisa enorme, genial, das maiores entre a sua obra – deixe-me dizer-lhe imodesta mas muito sinceramente: Do alto do meu orgulho, esses versos são daqueles que me indicam bem a distância que, em todo o caso, há entre mim e você. E Eu já me considero tão grande, já olho em desprezo tanta coisa à minha volta... Perdoe-me. Mas só assim eu posso indicar-lhe a justa medida da minha admiração. Não se pode ser maior, mais belo, mais intenso de esforço – mais sublime: manufacturando enfim Arte, arte luminosa e comovente e grácil e perturbante, arrepiadora com matérias futuristas, bem de hoje – todos prosa. Não tenho dúvida em assegurá-lo, meu Amigo, você acaba de escrever a obra-prima do Futurismo. Porque, apesar talvez de não pura, escolarmente futurista1 – o conjunto da ode é absolutamente futurista. Meu amigo, pelo menos a partir de agora o Marinetti é um grande homem... porque todos o reconhecem como o fundador do Futurismo, e essa escola produziu a sua maravilha. Depois de escrita a sua ode, meu querido Fernando Pessoa, eu creio que nada mais de novo se pode escrever para cantar a nossa época. – Serão tudo mais especializações sobre cada assunto, cada objecto, cada emoção que o meu amigo tocou genialmente. Em suma: variações sobre o mesmo tema. Eu quero percorrendo a ode destacar-lhe alguns dos versos que mais me abateram de admiração. Este verso fechando a 1.ª parte é uma fulgurância genial.

«Ah! como eu desejaria ser o souteneur d’isto tudo!»

Podia a ode não conter mais beleza alguma que só isto, quanto a mim, a imortalizaria.

Depois, como é belo e – de resto – de acordo com as teorias futuristas:

«Um orçamento é tão natural como uma árvore, E um parlamento tão belo como uma borboleta.»

Outra coisa enorme, duma emoção clara, e feminina, gentil:

«Up-la-ho jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de duas cores!»

Ainda lhe cito como admirável, entre muitas outras, a passagem:

« A fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios» etc.

Outra maravilha o final com as suas onomatopeias.
Do que até hoje eu conheço futurista – a sua ode não é só a maior – é a única coisa admirável. O lê-la, creia, meu querido Amigo, foi um dos maiores prazeres da minha vida – pois fica sendo uma das peças literárias que mais sinto, amo e admiro. Rogo-lhe só que acredite nas minhas palavras e que elas estão longe ainda de traduzir todo o meu entusiasmo. A minha pena, confesso-lhe, é só uma: que não seja o nome de Fernando Pessoa que se escreva debaixo dela – isto apesar de todas as considerações. Não acho a ode um excerto (ou excertos). Acho-a pelo contrário – tal como está – um todo completo, perfeito em extremo, em extremo equilibrado. Depois de tudo isto, meu Amigo, mais do que nunca urge a Europa!...

Mando-lhe junto uma poesia minha. É bastante esquisita, não é verdade? Creia que traduz bem o meu estado de alma actual2 – indeciso não sei de quê, «artificial» – morto – mas vivo «por velocidade adquirida» – capaz de esforços mas sem os sentir: artificiais, numa palavra. Cada vez, meu querido amigo, mais me convenço de que escreverei dois livros: Céu em Fogo e Indícios de Ouro... Depois...? ... Não me «vejo» nesse depois...

O Pacheco vai-se embora, coitado, é claro, por causa da falta de dinheiro (não lhe diga que lhe disse isto). Ele fez ultimamente umas sanguíneas sobre a Duncan que são muito belas.

Peço-lhe a você que escreva, fale dos meus versos e não se esqueça do meu pedido pelo qual torno a pedir ainda muitas desculpas.

Dê muitas saudades ao Vitoriano Braga de quem em vão tenho esperado a prometida carta.

Admirável a poesia do Guisado que ontem também recebi. Admirável.

 

Um grande, grande abraço do seu

Mário de Sá-Carneiro

 

O Franco e Pacheco agradecem as suas saudades e enviam-lhas de novo.

P. S. Os versos que lhe envio hoje parecem-me a coisa minha que, em parte, mais poderia ter sido escrita por você. Não lhe parece? Diga. E diga detalhadamente do valor da poesia, pois eu ignoro-o. Não se esqueça!

 

1 Ref. a citação de Platão e o parêntese do burro puxando a nora, etc.

2 Isto muito mais sobre o soneto «Apoteose» do que sobre a poesia «Quasi».

 

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5544
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre folha pautada, timbrada "Café de France".
Dados de produção
1914 Jun 20
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Futurismo, Modernismo
Álvaro de Campos
Alfredo Guisado
Carlos Franco
José Pacheco
Vitoriano Braga
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.