Virtual Archive of the Orpheu Generation

Mário de Sá-Carneiro

The Virtual Archive of Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), modernist poet, includes his correspondence, notebooks, manuscripts and published work during his lifetime. Most of these documents were gathered by François Castex, French intellectual, and are kept at the National Library of Portugal. Also included here are letters sent by the author to his great friend Fernando Pessoa.

The full documents can be found in the 'PDF' box and the manuscripts have been transcribed in the 'Edition' box. 

 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/5_8
Esp.115/5_8
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Paris, no dia 15 de Junho de 1914. 

 

 **

Paris – Junho de 1914

Dia 15

 
Refugio-me da chuva, meu querido Fernando Pessoa, num café lepidóptero em face da Avenida da Ópera. São 3 horas da tarde e às 3 1/2 devo estar no Riche com o José Pacheco. Entanto esperemos que a chuva passe. É verdade, antes de mais nada recebi hoje a sua 1.ª carta que muito me interessou e acima de tudo agradeço.

Estado moral e físico: Preocupa-me sobretudo o estado físico neste instante – enervado, meu caro amigo, por uma audaz constipação. Sobre o moral – deixemo-lo para outra carta. Mesmo não há nada de interessante – apenas hoje sozinho, o meu pai tendo partido às 12.16 começo a instalar-me em Paris. Mas a glória de novo a encontrar e vibrar, laivada de cinzento no entretanto pela atmosfera sempre dolorosa do meu mundo interior, tem-me dispersado todos estes dias – vivendo em verdade até hoje só em metade de mim – como até raciocinei esta manhã ao almoço em que verdadeiramente, lucidamente me senti meio só (agora houve um trovão!...), embora o estofo do banco se amarfanhasse sob uma inteira pessoa nutrida...

Gente conhecida: Estive antes de ontem, chamado pelo Pacheco, na Closerie à meia-noite. Que horror, meu amigo! Que horror!... Perto de nós havia um grupo português... ah! mas portugueses carbonários. Da Brasileira, meu amigo, da Brasileira! Castañés! Castañés!... – Roguei logo ao Pacheco que não me apresentasse! E que provincianos até no aspecto físico!... Mas artistas... Chiça, meu amigo! Chiça! Desculpe – e é para não empregar outra palavra! Entre eles ondulava o Fonseca – que já dissera mal de mim ao Pacheco (pudera!) e me apertou a mão ultrageladamente. Eu enquanto falava ao Pacheco, (sempre dos nossos, europeu e intenso – um óptimo companheiro)1 fazia jogos malabares com a voz... Lepidópteros! Lepidópteros! Mereciam que os ungissem de bosta de boi!... E não haver uma lei que proíba a exportação de semelhantes mariolas!... Sujam, enchem Paris de escarros verdes! Castañés! Castañés!... Assim raras vezes voltarei à Closerie. Para tanto, mais valia então ficar por Lisboa! Hoje hei-de voltar, à noite, tendo encontro com o Santa-Rita... E eis-me à espera dele – não à espera propriamente, pois estou a escrever ao meu querido Fernando Pessoa na Closerie. Acidentadíssima portanto esta carta – pois foi escrita em 2 cafés e a 2 horas diversas. Estive toda a tarde com o Pacheco que lhe manda muitas recomendações – insultando os lepidópteros daí e daqui. (Iniciei o Pacheco neste nosso termo paúlico – é claro).

Petite-Semaine: Mando-lhe um artigo do último número que acho uma verdadeira trouvaille.

Por hoje nada mais lhe digo – eu próprio muito lepidóptero em vista da constipação já anunciada – apenas lhe digo que hoje não quereria você estar em Paris, pois fez à tarde uma estrondosa trovoada – de resto a primeira a que assisto nesta terra.

Adeus, meu querido, querido Amigo. Escreva sempre. Dê-me novidades daí e mande-me sobretudo, se lhe for possível, a crítica do Caiola sobre a «Distância».

Um grande abraço do seu

Mário de Sá-Carneiro
Saudades ao nosso Alberto Caeiro. Muito interessante a ode do M. da Veiga. Adeus.

P. S. – Apareceu agora o Santa-Rita – muito amável. Mas estava com o irmão do H. Franco, isto é: Fonseca n.º 2. Assim pediu desculpa e marcámos rendez-vous para depois de amanhã.

 

1 Cessou a chuva. Estou no Café Riche. 
 
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5543
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre folha lisa e sobrescrito.
Dados de produção
1914 Jun 15
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Alberto Caeiro
José Pacheco
Santa-Rita
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.