Virtual Archive of the Orpheu Generation

Mário de Sá-Carneiro

The Virtual Archive of Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), modernist poet, includes his correspondence, notebooks, manuscripts and published work during his lifetime. Most of these documents were gathered by François Castex, French intellectual, and are kept at the National Library of Portugal. Also included here are letters sent by the author to his great friend Fernando Pessoa.

The full documents can be found in the 'PDF' box and the manuscripts have been transcribed in the 'Edition' box. 

 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/4_38
Esp.115/4_38
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris, a 10 de Maio de 1913.

 

 

**

Paris, Maio de 1913

Dia 10

 

Meu querido amigo,

Cá estou outra vez!
E foi já antes de ontem que eu copiei os versos que vão junto para lhos mandar – o que afinal só hoje venho a fazer.

Oiça:

No «Rodopio» o que eu quis dar foi a loucura, incoerência, das coisas que volteiam – daí a junção bizarra de coisas que aparentemente não têm relação alguma. Quis dar também o rodopio pela abundância, pelo movimento. Há versos de que gosto bastante, por exemplo

Chovem garras, manchas, laços...

Planos, quebras e espaços

Vertiginam em segredo.

as duas quintilhas que se seguem. A antepenúltima.
Sobre a 8.ª (Há incensos de esponsais etc.) é que tenho dúvidas.

Escrevi-a na seguinte intenção: Dar a nota da incoerência, no meio do singular turbilhão das coisas esplêndidas e bizarras, vêem-se grifar também coisas vulgares da vida, ou antes – a nostalgia das coisas vulgares da vida; muita, muita ternura. Traduz essa quintilha, no meio das outras, uma coisa muito muito verdadeira da minha alma. Mas receio no entanto que ela venha destruir o equilíbrio do desequilíbrio artístico da composição. Meti-a entre parêntesis, por isso mesmo. Gostaria muito de a conservar. Entanto hesito, e, em última instância, recorro a você. Mas seja imparcial. E diga se ela pode ficar. Se apenas for preferível eliminá-la, deixá-la-ei. Mas se for preciso condená-la, condená-la-ei. Você mo dirá.

A seguir ao «Rodopio» vem a «Queda», fazendo conjunto com ele. Gosto bastante desta poesia e muito do seu final.

Para a Dispersão faltam pois só duas poesias, porquanto aquela «Mentira» não a comporei. O assunto não é, depois de o pensar melhor, o que eu julgava. E, como é, não entra pelo menos no quadro. Ainda sobre o próprio «Aquele que estiolou o génio» tenho dúvidas. O que farei decerto é «Como eu não possuo» que se grifará nesta ideia: não é só em mim que me disperso – é sobre as coisas: Assim como me não posso reunir, também não posso reunir, possuir as coisas.

Sobre «Aquele que estiolou o génio». Esta ideia de conto, tratado até cientificamente, volveu-se-me de uma forma bizarra, poética. No meu conto o protagonista havia de ter sensações como esta: uma mulher passava e, casualmente, o acariciava. Ele ficava com uma ternura infinita por essa mulher porque ela tinha tocado nele – mas não pelo que ela lhe tinha feito – sim pelo que ela tinha feito a si própria, mexendo nele – mexendo no génio. E, em exaltações, ao ver as maravilhas subirem dentro de si, nos jardins, abraçaria as árvores – para lhes fazer bem. Olhar-se-ia ao espelho, pasmado de admiração em frente de si – mas não pelo seu físico, sim pelo que havia dentro dele. E com ternuras especiais olharia para o seu génio. Às vezes procuraria adormecê-lo, receante de o fatigar etc. Você vai ver pelo excerto que adiante mando como poeticamente eu pretendo traduzir estas coisas, que no conto seriam tratadas de fora. Peço muito que me diga o que antevê, pelos excertos, da poesia total e se acha que a deva executar ou não. A executá-la há-de ser assim neste corte, nesta maneira, nesta orientação. Caso contrário renunciarei a tratar o assunto em poesia. Os seus conselhos mo ensinarão. Aí vai o que fiz:

– Não vibres tanto, meu amor,
Toma cuidado, olha que vais quebrar...

Se queres ungir, vem cá, ó minha luz, ó meu tesouro,

Vamos beijar os plátanos...

Fecha os olhinhos – não te cegue o ouro;
Cobre-te bem que podes esfriar...

...............................................................

Lindo passeio, não foi?

Mas tu nem um instante sabes estar sossegado...

Como tu és ágil... como tu saltaste...

Como tu correste... como te afogueaste...

E a rapariguinha que te beijou?
Mal sabe ela que há-de ser rainha...
Viverá cem anos
Porque te afagou...

...............................................................

O sol já se vai a pôr,
É tempo de adormecer...

Queres que te conte uma história?...

Não sonhes tanta glória

Que podes entontecer...

 

Vamos, ouve a minha história:

Era uma vez uma princesa,
Filha dum grande imperador,
Que se morria da tristeza
De não saber vibrar de amor...

...............................................................

 

É só isto que tenho feito. Deixe-me explanar-lhe o meu plano. A história contará que esta princesa era infeliz por não poder sentir o amor e passar fechada no seu quarto d’ouro, tecendo maravilhas no seu tear de marfim... Mas um dia, certo pajem galante, finalmente, soube fazê-la vibrar d’amor. Ela então desceu do seu quarto, deixou o seu tear e é feliz. Isto indica pois, e sempre, a mesma ideia da vida fácil, natural, que passa. Mas o «menino» de olhos perdidos não ouve a história, aborrece-se escutando-a, mas não adormece – prossegue ansiando, subindo; como no «passeio» não descansou, sempre correndo, saltando. Outras partes da poesia serão levar o «menino» em frente do espelho, embalá-lo etc., até ao fim, o estiolamento à força de cuidados. A poesia é voluntariamente maternal, terna, com os diminutivos e as carícias que as mães têm para com os filhos. Ficaria assim dum corte e tom original. Seria como que um simbolismo às avessas: em vez de traduzir coisas reais por símbolos, traduziria símbolos por coisas reais. A palavra «génio» não entraria mesmo na composição. Tudo isto por vezes me parece muito belo. Mas outras receio de ser uma beleza errada. Peço pois o seu conselho. Tanto mais que desta ideia em conto, eu tenho a certeza de tirar uma bela coisa (mesmo a poesia não me impediria de o escrever). No caso de o incluir na série Dispersão será essa poesia a que encerrará o folheto – pois marcará o «fim» de tudo.

Sobre isto, a sua opinião inteira, e breve, meu querido amigo.

Ansiosamente espero a sua resposta a esta e às outras minhas cartas. 

Mais uma vez lhe suplico que me responda logo que puder!


Ainda sobre a sua última carta:
Não vi o livro do Aquilino.
Concordo inteiramente com o que diz sobre o Eugénio de Castro. Muitos abraços e de novo mil perdões e rogos de resposta breve do

seu maçador amigo

Sá-Carneiro

 

Peço-lhe que coloque em ordem de preferência todas as poesias que lhe tenho enviado.

O 4.º verso da 2.ª quadra do «sono» é: «Nem dei pela minha vida!» Não sei se já lhe tinha dito.

Vai já um apontamento interessante do Pawlowski.

 

Post-Scriptum

Modifiquei da seguinte forma a quadra que substitui a 1.ª parte do «Simplesmente»:

Ao ver coar-se a vida humanamente

Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente

Das coisas geniais em que medito.

 

Estes «geniais» não é hipervaidade. As coisas são geniais porque o são elas próprias – coisas. Não por eu pensar nelas.

Como tenho tempo a mais vou-lhe contar uma cena patusca acontecida com o Santa-Rita há bastantes semanas já. Li-lhe o «Bailado» e ele (que achara uma coisa muito má o «Homem dos Sonhos», mas que já gostara muito da segunda parte do «Simplesmente») ficou entusiasmado. Fez-mo repetir e de súbito, na onda dos elogios, deteve-se... – Que é, homem, perguntei eu, acabe... E ele confessou:

– Vou-lhe dizer uma coisa desagradável. «É que você não tem valor para fazer coisas tão belas como essas».

Eu lhe explico o que isto quer dizer, meu caro Pessoa: É que segundo o Santa-Rita confessa, para ele vale muito mais o Artista do que as suas obras, isto é: o aspecto exterior do artista: os seus cabelos, os seus fatos, a sua conversa, as suas blagues – o seu eu, em suma, como coisa primordial – a sua obra, como coisa secundária. Isto é espantoso, mas é assim. De forma que a minha obra cubista, não era digna de mim... É claro que lhe agradeci a frase, pois ela (para mim que só dou importância à obra) era um simples elogio...

Depois o Santa-Rita, sempre entusiasmado, pediu-me uma cópia do escrito, pois queria ilustrá-lo. E fantasiou logo uma publicação em plaquette «que marcasse bem Paris», e que como ilustrações, conteria, além das águas-fortes que sobre o «Bailado» ele comporia, o nosso retrato – mas o nosso retrato confundido num só retrato... que aliás ninguém perceberia que era um retrato. Mas o melhor ainda você não sabe. No dia seguinte, aparece-me em casa às 7 horas da manhã (!!) e vem-me mostrar, não desenhos que tivesse já feito, mas frases que juntava ao «Bailado», para o enlouquecer mais, dizia!... Tanta petulância e ingenuidade desculpam-se pois é certamente irresponsabilidade. Vou-lhe citar algumas dessas frases de que ainda me recordo.

«A baleia a balar...
O Clarim da Mimoira... Tenho saudades de Y»

e no meio, uma frase em espanhol, do Goya!!!!!... E dizia que era conveniente meter uma frase em francês e noutras línguas...

Eu pude por isto ver o que era a arte do Santa-Rita (não digo dos cubistas) pois ele me dizia que estas coisas eram só para marcar Paris, para não se perceberem. E acrescentou mesmo que eu devia arrancar do «Bailado» tudo quanto se percebesse. Em face de tudo isto eu não fiz mais do que sorrir. Não valia a pena indignar-me. E é claro que nunca mais se falou nem em plaquettes, nem em bailados, nem em ilustrações...

(Ele ainda achava muito conveniente pôr na capa as armas reais portuguesas!...) Mas olhe que tudo isto era a sério o mais possível, pois se tratava, em suma, duma obra a que o seu nome viria ligado.

Adeus, diga se não acha isto «óptimo». No entanto escusa de divulgar muito esta piada, peço-lhe.

O seu

Sá-Carneiro

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5279
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre 12 páginas lisas e timbradas (Café Riche) e 1 folha quadriculada.
Dados de produção
1913 Maio 10
Inscrita. Na última folha: 13 de Maio de 1913.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Aquilino Ribeiro
Eugénio de Castro
Santa-Rita
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115/4
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.