Identificação
Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris, a 3 de Maio de 1913.
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Paris – Maio de 1913 Dia 3
Meu querido Fernando Pessoa,
Cá estou de novo a maçá-lo. Mas você tem que ter pena de mim. Escrevo uma coisa e logo tenho uma ânsia de saber o que o meu amigo pensa dela. É um entusiasmo, uma ansiedade... tenha paciência. Nós estamos no mundo para termos paciência e para nos aturarmos uns aos outros. De resto o que aí vai não tem importância. Eu pelo menos não sei se tem importância. Mas o curioso é como esses versos nasceram. Não nasceram de coisa alguma. Eu lhe conto:
Antes de ontem, 5.ª-feira de ascensão, dia de Santo cá na República, à tarde, quase a dormir, num aborrecimento atroz, alheio, com a cabeça esvaída (dormira muito pouco na noite antecedente) eu estava sentado na terrasse dum café do Boul. dos Italianos. Sem saber como havia de passar o tempo pus-me a fazer bonecos num papel... e de súbito comecei a escrever versos, mas como que automaticamente. Coisa para rasgar, pensei logo. Se havia disposição má para escrever, era aquela em que eu estava. A seguir compus, sem uma rasura, mais de metade das quadras que lhe envio – coisa única em mim que, como sabe, não tenho o trabalho rápido. Li o que escrevera por desfastio e achei-lhe um sabor especial, monótono, quebrado (pela repetição da palavra na rima), boa tradução do estado sonolento, maquinal, em que escrevera esses versos. E ontem, em vista disso, juntei o resto das quadras, mas num estado normal e reflectidamente. Acho isto interessante. E sobretudo, esses versos; eu, ao lê-los, sinto que marcam bem o ritmo amarfanhado da minha alma, o sono (não o sonho – o sono) em que muitos dias vivo. Sono d’alma, bem entendido. Mas que nessa tarde coincidia com sono físico... Francamente, rudemente, diga-me você o que isso vale. Afirmo-lhe que não o sei. Mas pressinto que é ou coisa muito valiosa, ou uma série de banalidades. Espero ansiosamente a sua resposta. Peço-lhe que perdoe «o domingo de Paris». Não o corto, porque essas duas quadras pertencem ao número das que nasceram num estado subconsciente, com as melhores, aliás. (Domingo; porque, sendo dia santo, o aspecto da cidade é o mesmo que o de Domingo.) Rogo-lhe também que atenda particularmente às quadras 3.ª, 9.ª, 14.ª, 15.ª, 20.ª e aos dois versos isolados finais que julgo ser o melhor da poesia. A quadra 15.ª não tem beleza, se lha indico é porque acho muito singular o tê-la escrito. Que quer dizer isso? Parece uma profecia... Porque a escrevi eu? Como é que de súbito me surgiu essa ideia do norte, duma cidade do norte que eu depois, procurando, vejo que não pode ser outra senão S. Petersburgo?... (Escuso de lhe dizer que esta quadra pertence ao número das que escrevi primeiro, por isso mesmo é que ela se torna interessante.) Do final da poesia gosto muito, muitíssimo, por a terminar quebradamente, em desalento de orgulho: Leões que são mais que leões pois têm asas e aos quais no entanto arrancaram as jubas, a nobreza mais alta, toda a beleza das grandes feras douradas. Nas quadras que escrevi dum jacto raras emendas fiz: mudei um – tristeza! – para «sequinha», por exemplo, e tudo o mais, muito pouco, e meras substituições de palavras. Em resumo, essa poesia pouco mais tempo levou a compor do que o tempo material para a escrever. Como digo, isto em mim é extraordinário.
Repito: Ignoro se isso é alguma coisa ou não é nada. Você mo dirá. A você, ao seu alto espírito, à sua maravilhosa clarividência, me confio, só lhe rogando que me responda o mais breve possível e me perdoe estas constantes maçadas.
E não se esqueça também de responder à minha última carta, se é que ainda o não fez.
Repetindo-lhe os meus agradecimentos e enviando-lhe um grande abraço, sou o seu muito amigo
Sá-Carneiro
P. S. – Depois de composta a poesia, vi que ela era sincera, que encerra talvez um canto do meu estado de alma. Pelo menos, creio-o.