Esquecia-me de que a tinha concluído – isto é: instintivamente não a considerava, não cria na sua existência – porque em verdade ela não existe. E no entanto, veja, ainda hoje creio na sua beleza – simplesmente essa beleza é uma beleza errada. Não é uma falsa beleza, é uma beleza errada. Daí eu aceitar a conclusão da sua crítica, condenar o meu trabalho, condená-lo mesmo à morte, e no entanto estimá-lo. Isto é muito difícil de fazer compreender. Deixe-me explanar imodestamente: No «Bailado», eu acumulei beleza em volta de nenhuma armadura, acumulei beleza à toa, uma sobre a outra, e assim o total, composto de coisas belas, ficou inexpressivo, nada atraente – sem valor numa palavra. Quanto a mim o defeito primordial da obra é, como eu já pensava, o título ser indiferente: tanto importaria: «Bailado», como «Sonho d’Ópio», «Música», etc. (O «Bailado» não será no entanto um simples bailado de palavras? Ir-se-ia embora toda a significação material, para ser só a do ritmo de sons e ideias? Isto sou eu ainda a querer salvar-me num esforço, aliás inútil. Diga entanto o que pensa sobre este «remédio».)
No princípio e especialmente as primeiras linhas, acha-as você belas. E sabe porquê? É que eu aí comecei compondo apoiado; lembrando-me do baile, procurando-o traduzir artisticamente. «Tudo horizonte, só horizonte» porque o pano se erguia sob um cenário maravilhoso de cor, onde tudo era silêncio, e ao longe horizonte crepuscular e vermelho. Mas em breve um ruído brusco de silêncio – o voar dos pés nus da dançarina – vinha animar o quadro.
Ainda me apoiei algumas linhas, mas em breve atacado da bebedeira de palavras – o que não é o mais grave: o pior é que essa bebedeira é também de ideias, sobretudo no final – me transviei. Não mais me lembrei da dançarina, só me lembrei de sons falsos, de ideias que saíam do quadro. E daí a ruína. Por isso muita razão tem você quando diz que as minhas frases nenhuma impressão lhe dão de bailado (a não ser talvez, relembro na acepção de bailado, de redopio, de ideias e palavras).
Contra um pormenor mínimo da sua crítica me insurjo. É quando diz que «sombra ungida» não quer dizer nada. Quer, olhando toda a frase: «A grande esfinge platinada da luz do sol faz sombra ungida». Sim. Um outro obstáculo faria simplesmente sombra; mas a esfinge, a grande esfinge misteriosa e simbólica faz «sombra ungida», sombra sagrada, por ser feita pela esfinge. É um detalhe mínimo, que nem belo chega [a] ser, mas que é significativo. Parece que isto se não pode negar.