Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris, a 25 de Março de 1913.
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Paris 25 março 1913
Meu querido Fernando Pessoa,
Recebi hoje a sua carta que muito e muito agradeço. Eu não sei mesmo como agradecer-lhe todas as suas gentilezas. Percorrendo a sua carta eis o que tenho a dizer-lhe sobre cada um dos seus parágrafos:
– É muito verdadeiro e lúcido o que você diz acerca do cubismo. Plenamente de acordo. Desse Amadeu Cardoso tenho ouvido falar muito elogiosamente ao Santa-Rita e vi uns quadros dele, sem importância e disparatados no Salão de Outono. Tratava-se duma turbamulta de bonecos – era um inferno, um purgatório ou qualquer coisa assim. Sei que é um tipo blagueur, snob, vaidoso, intolerável, etc. etc. Parece que não se pode ser cubista sem se ser impertinente e blagueur...
– Muito obrigado pelas coisas demasiadas que me diz a respeito do «Homem dos Sonhos». Mande pois o conto para o n.º de Maio – e com a antecedência necessária, se for possível, para eu poder ver as provas. Agradeço-lhe muito as indicações que me der para possíveis retoques. Não tenho nada a desculpar-lhe! Repito: nunca me peça desculpas por coisas destas. Só lhe tenho a agradecer o interesse que mostra pelos meus escritos.
– Acerca de «Aquele que estiolou o Génio» é certo o que você diz. Entanto esse conto está-me completamente amadurecido e julgo realizá-lo satisfatoriamente. Sabe que durante um segundo me passou a ideia de fazer do homem uma mulher? Digo-lhe isto apenas por pormenor curioso pois pus a ideia de parte. Que lhe parece? Sobre o «Bailado», é claro que só da real visão se pode dizer. Vão em separata alguns excertos desse «sonho». Tome-os apenas como frases soltas, não corrigidas e ainda longe do total – apenas esboços a carvão.
– Lastimo o que me diz acerca de «actividades literárias». O que é preciso é reagir... e vencer. Mas a vitória é dificílima, sobretudo quando as pequenas circunstâncias nos «raspam».
– Gostava que lesse o «Homem dos Sonhos» ao Ponce se quando o encontrar ainda o tiver.
– Apraz-me muito o surgimento desse folheto «Jogo Franco» de você e Pulido. Faz-se muito sentir a necessidade duma publicação dessas. Mas estimaria que saíssem de vez em quando da política para a Arte. E sairão com certeza. Escuso de lhe dizer que concordo inteiramente sobre o que o Pulido lhe disse sobre você e o Pascoais. A «repetição» ainda que em frases, pensamentos geniais é flagrante na gente da Renascença e mesmo dentro do mesmo poeta. Noto isto mesmo no Mário Beirão e daí achar inteiramente justificado o seu receio sobre a possível monotonidade do Último Lusíada. Coisa que nunca se pode dar com os seus versos, tão grandes, tão variados.
– Belíssimas as poesias que me manda, mas admiro sobretudo a primeira, simplesmente maravilhosa.
– Como você tem razão quando diz: o que precisávamos era podermos conversar! Que saudades, que saudades eu tenho das nossas palestras. Nem o meu querido amigo imagina! Como nos desforraremos este verão!
– É profundamente verdadeiro o que diz sobre a «grande angústia e as pequenas coisas que só ralam». Avanço mais: numa grande angústia, às vezes, pode até um artista ir buscar, ainda que dolorosamente, material e vontade para uma obra de génio. A dor, quanto a mim, pode ser fecunda. Mas nunca a contrariedade. Essa, mesquinha, enervante e torpe, esmaga as maiores energias: é a eterna fábula do leão e do mosquito.
– Sempre que no Teatro vierem artigos seus mande-mo. Porque o meu pai no começo de abril vai para Tancos (Escola Prática de Engenharia) aonde se demorará até julho e não poderá por consequência enviar-mo. Numa folha junta vão pois coisas do «Bailado» – sem ordem e incompletas, em bruto, não desbastadas, repito. Mas dê-me a sua opinião sobre elas. Por mim há alguns pedaços que gosto. É difícil talvez de compreender a orquestração que reside no meu espírito – a música, dos passos do bailado, em suma. Junto também um pedaço do «Além». Sobre ele lhe rogo da mesma forma a sua opinião detalhada. E o mais breve possível. Sobretudo sem piedade nem desculpas.
Adeus, meu querido Fernando. Receba um grande, grande abraço do seu muito saudoso
Sá-Carneiro
P.S. – Quando ler o «Homem dos Sonhos» ao G. Pulido não se esqueça de me dizer a opinião dele.
E do Ramos não se sabe nada?
o S.-C.
Escreva breve!
Olhe que não mudei de hotel. Sempre 50, rue des Écoles. Isto é um café aonde por sinal estou à espera do Santa-Rita.