Virtual Archive of the Orpheu Generation

Mário de Sá-Carneiro

The Virtual Archive of Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), modernist poet, includes his correspondence, notebooks, manuscripts and published work during his lifetime. Most of these documents were gathered by François Castex, French intellectual, and are kept at the National Library of Portugal. Also included here are letters sent by the author to his great friend Fernando Pessoa.

The full documents can be found in the 'PDF' box and the manuscripts have been transcribed in the 'Edition' box. 

 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/4_18
Esp.115/4_18
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris, a 7 de Janeiro de 1913.

 

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Paris – Janeiro de 1913 Dia 7

Meu querido amigo,

 

Apresso-me a responder à sua carta hoje recebida.

O que nela diz, alegrou-me e entristeceu-me. Alegrou-me a sua colaboração nessa revista inglesa. Acho uma coisa óptima, um trabalho sobretudo útil e uma boa acção, qual é a de tornar conhecidos no mundo os poetas portugueses de hoje, fazer saber que num canto amargurado e esquecido da Europa, uma poesia grande e nova se começa a desenvolver rasgando horizontes desconhecidos, perturbadores e belíssimos. Não desanime nesse trabalho!

Acho muito feliz o novo plano de publicação dos seus versos. O título Gládio é, quanto a mim, um verdadeiro achado, uma coisa muito bela. Não o deve é revelar a ninguém, não vá surgir nas montras das livrarias qualquer plaquette anémica e imbecil com esse nome.

A «Sinfonia em X» não poderia ser incluída neste volume? Eu lembro-me que talvez pudesse ser e por isto: Nela, há com efeito um combate – o poeta esgrime, brande o gládio contra o desconhecido, o infinito, que quer abraçar, compreender, sintetizar. Que lhe parece? Mas isto da inclusão duma poesia neste ou naquele volume é coisa de somenos importância e que o não deve torturar.

O que na sua carta me entristeceu foi o que de si diz. Ainda bem que no «suplemento» escreve que um pouco de energia regressou. Creia que compreendo e, melhor, sinto muito bem a tragédia que me descreve, tragédia em que eu tantas vezes ando embrenhado. É uma coisa horrível! Um abatimento enorme nos esmaga, o pensamento foge-nos e nós sentimos que nos faltam as forças para o acorrentar. Pior ainda: sentimos que se nos dessem essas forças, mesmo assim, não o acorrentaríamos. E vamos dormindo o tempo. Intimamente sabemos que a crise passará. Fixaremos a ideia, e realizaremos. Mas embora saibamos firmemente, não o cremos. Eu por mim, meu caro amigo, embora saiba muito bem que hei-de escrever mais livros, não o acredito nestes períodos de aniquilamento. A este respeito devo-lhe dizer que me parece aproximar-se uma época de energia – após tantos meses de passivismo. Veremos... Que outro tanto lhe suceda, eis o que do coração desejo e acredito. Ah! como eu compreendo e sinto as linhas que você escreve: «Ainda assim eu não trocaria o que em mim causa este sofrimento pela felicidade de entusiasmo que têm homens como o Pascoais. Isto que ambos sentimos – é do artista em “nós” (?) misteriosamente. Os entusiasmados e felizes pelo entusiasmo, mesmo o Pascoais, sofrem de pouca arte.»

Como isto é verdadeiro e bem dito! E como eu me revolto quando aventando o ar, de narinas abertas, olhar olhando ao alto, e por altissonante o eterno Santa-Rita me lecciona: «Creia, meu querido Sá-Carneiro, em arte o entusiasmo é tudo! Como eu amo as pessoas que são todas entusiasmo! Que se curvam em face dalguém, ou dalguma ideia, sem reflectir, sem admitir meios-termos nem raciocínios. São estas as individualidades, as criaturas de raça. Ah! e eu, sou uma destas criaturas de raça, toda de raça!... Sou mouro, espanhol... Você, meu caro Sá-Carneiro, não tem entusiasmos, não tem instinto – é todo cérebro... E note, eu admiro as individualidades sejam elas o que forem. Conhece em Lisboa o Veríssimo amigo da papelaria do Camões? Como eu admiro esse homem... Todo papeleiro... E religioso, muito talassa...» Etc. E por aqui fora canta o contra-senso, a impetuosidade... o disparate, a desordem, em resumo, que nunca são o génio (ou quando muito são génios falidos) – porque esse, é certo, pode ser e é loucura, mas não loucura barata e mesquinha, sim loucura grande, resplandecente. Não imagina você como me incomodam, me arrepanham e torturam as conversas com este personagem de quem procuro afastar-me o mais possível. Actualmente há 15 dias que não o vejo. Ver que alguém não tem razão, e que triunfantemente a cada passo brama que a razão está do lado dele, é para mim uma coisa insuportável.

As suas cartas, meu caro Fernando, essas são, pelo contrário, alguma coisa de profundamente bom que me conforta, anima, delicia – elas fazem-me por instantes feliz. Como é bom termos alguém que nos fale e que nos compreende e é bom e sincero, lúcido, inteligente = grande.

O prazer com que eu [o] abraçarei daqui a um semestre! As longas, deliciosas conversas que teremos...

Acerca de ideias novas, esta nascida ontem à noite: Um artista busca a perfeição – é esta a sua tortura máxima, e desfaz e refaz a sua obra. Vence: atinge a perfeição e continua a querer fazer maior: porém a tela em que trabalha evola-se por fim, dilui-se, torna-se espírito – desaparece. Esse artista ultrapassou a perfeição. É possível que em vez dum pintor faça dele um músico. Não dou a isto, por enquanto, grande importância. Diga você a sua opinião. E muito obrigado pelo que escreve acerca da nova ideia do «Homem dos Sonhos».

Como já aí tencionava mandei o meu livro acompanhado duma carta ao redactor da Comoedia G. de Pawlowski. Ele deu-me esta resposta interessante (ler um papelinho junto). Não acha curioso? Na «Semana Literária» da Comoedia noticiou o recebimento do livro dizendo que era um volume de novelas publicado em português. Bem mais delicado que o Lebèsgue, porquanto eu não enviei o livro sequer à redacção; mas só a ele e para o seu domicílio particular.

Em aditamento devo-lhe dizer que outro título que me agrada muito é o de Ascensão aonde, talvez melhor (com certeza melhor, a não ser por causa do tamanho grande do Orfeu) cabe a «Sinfonia em X». Quero destacar aqui um admirável, um enorme verso seu, este:

«Quanto mais desço em mim mais subo em Deus.»

E como eu compreendo bem, profundamente bem essa quadra soberba pelo que diz nas palavras e no som: «Alma que... etc...» A crença maior, a verdadeira crença nobre e pura, é a descrita nela!

E um grande abraço, meu querido, meu muito querido Fernando

o seu

Sá-Carneiro

Escreva sempre!...
Como todas as minhas cartas esta é infame na prosa e na caligrafia.

Mil perdões. É que tocam a Martinica aqui ao pé de mim...

 

 
 

 

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Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre 6 folhas lisas e timbradas (Café Riche, Paris) e sobrescrito.
Dados de produção
1913 Jan 7
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Santa-Rita
G. de Pawlowski
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115/4
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.