10
Paris 10 dezembro 1912
Meu caro amigo,
Recebi a sua carta de cinco que muito agradeço.
Achei descabidas as linhas finais. De forma alguma concordo com você em que possa ser dúbia a maneira como falo da publicação do «Homem dos Sonhos». Aliás com o máximo prazer satisfarei esse pedido, estimando mesmo ver o conto publicado na Águia. É claro que nada me sensibilizarei se, por qualquer motivo ele não for inserido. Até ao fim do mês, por conseguinte, lho enviarei terminado e, como diz, o meu amigo depois reverá as provas. E por tudo isto, os meus agradecimentos. Quanto à «defesa» de imitação do Mário, ela é na verdade descabida. Nem por sombras, durante um segundo, me passou pela cabeça semelhante ideia! Aliás como podia mesmo ela passar se os seus versos são tão característicos, são duma maneira tão sua, e compostos antes dos dele!... E depois, meu caro Pessoa, você não é dos que podem fazer coisas à «maneira dos outros». Os outros é que podem «fazê-las à sua maneira». Porque, acima de tudo, o meu amigo é uma «individualidade». E de resto parece-me que a alguns dos artistas da Renascença, mesmo dos de valor, falta essa primacial qualidade. Evidentemente não incluo nestes o Mário Beirão – que não considero em todo o caso uma grande individualidade – embora o considere um alto poeta, um soberbo artista.
A minha convivência com o Santa-Rita prossegue quotidianamente, interessante, sem dúvida, mas por vezes muito fatigante. Devo-lhe dizer que o Santa-Rita apenas tem admiração por um artista da nova geração: o Carlos Parreira. Mas esse é para ele um génio, valendo já a sua obra impressa por tudo quanto a gente nova – e mesmo a velha – tem escrito. Para o Santa-Rita esta frase dum escrito do Parreira vale uma literatura: «... com momices de gata e apelos sujantes de cadela». A frase é interessante, denota «alguém» mas daí a gritá-la a cada instante e a pô-la acima dos versos do Teixeira de Pascoais, do Mário Beirão e tantos outros, vai muito... Aliás o Santa-Rita não aprecia na prosa ideias, nem belezas – apenas quer música: «Escreva-me você, por exemplo, a descrição de um serrador serrando onde os rr se precipitem raspantes, e eu não terei dúvida em proclamá-lo um artista.» Mas só admite esta arte. Ora se na verdade eu admiro prosa e verso desta espécie (por exemplo, os «Violoncelos», em que se ouvem as cordas a gemerem, ou a sua «Flauta»), acho avançar muito querer reduzir a isto somente toda a literatura e amordaçar a ideia. Que diz a isto você? Outra grande admiração literária do nosso homem é, imagine quem, o Homem Cristo (pai)! Mas o Homem Cristo literato! Chama-lhe génio, cita entusiasmado frases dele e devora O Povo de Aveiro no Exílio, que aqui se publica hebdomadariamente!... Você compreende o que pode haver de fatigante na conversa com semelhante individualidade. No entanto, sempre em desacordo, largas horas palestramos. Mas se porventura se chega a qualquer ponto de discussão literária ele põe termo à conversa: «não querabastardar as suas opiniões» – diz. Ele a discutir a obra dum artista, só a poderia discutir profundamente, com veneração... Compreende bem a onda nervosa que me sobe pela espinha acima ouvindo tais petulâncias que dão a entender que o interlocutor não merece as honras duma dis- cussão literária. Mas eu sou delicado... delicadamente protesto. Mas que ventura se nestes momentos eu pudesse ser um Ponce de Leão!!... Santa-Rita diz conhecer toda a literatura, e ler Platão, Homero, Sófocles, Comte, Nietzsche, Darwin etc. e etc... Eu creio aliás muito pouco nos seus largos conhecimentos literários... não creio mesmo nada, meu amigo... Por isso talvez ele não discute... Dos artistas de hoje, a par do Parreira, apenas tem culto por um literato cubista Max Jacob que ninguém conhece e publicou dois livros em tiragens de cem exemplares. A primeira pessoa que não leu esses livros é ele... aliás cada volume custa 65 frs. Mas é genial!... porque é cubista... Picturalmente a sua grande admiração vai para o chefe da escola Picasso. Pasme: tendo eu tido na mão uma carta de Picasso, fui encontrar na letra do pintor espanhol profundas semelhanças com os arabescos santa-ritinos 1... A cada passo o Guilherme Pobre diz: «... porque você, Sá-Carneiro, bem vê, o artista hoje faz isto, aquilo, aqueloutro, tem tais ideias, etc., etc.» Das suas palavras depreende-se que só é artista quem assim procede – e só por proceder assim. De forma que ele, adoptando essas ideias, parece tê-las adoptado unicamente para ser como os artistas – para ser artista. Não sei se compreende esta embaraçada explicação. Em resumo: No artista o que menos lhe parece importar é [a] obra. O que acima de tudo lhe importa são os seus gestos, os seus fatos, as suas atitudes. Assim não usa relógio porque os artistas não usam relógio...