Virtual Archive of the Orpheu Generation

Mário de Sá-Carneiro

The Virtual Archive of Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), modernist poet, includes his correspondence, notebooks, manuscripts and published work during his lifetime. Most of these documents were gathered by François Castex, French intellectual, and are kept at the National Library of Portugal. Also included here are letters sent by the author to his great friend Fernando Pessoa.

The full documents can be found in the 'PDF' box and the manuscripts have been transcribed in the 'Edition' box. 

 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/4_12
Esp.115/4_12
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris, a 10 de Dezembro de 1912.

 

10

Paris 10 dezembro 1912

 

Meu caro amigo,

Recebi a sua carta de cinco que muito agradeço.

Achei descabidas as linhas finais. De forma alguma concordo com você em que possa ser dúbia a maneira como falo da publicação do «Homem dos Sonhos». Aliás com o máximo prazer satisfarei esse pedido, estimando mesmo ver o conto publicado na Águia. É claro que nada me sensibilizarei se, por qualquer motivo ele não for inserido. Até ao fim do mês, por conseguinte, lho enviarei terminado e, como diz, o meu amigo depois reverá as provas. E por tudo isto, os meus agradecimentos. Quanto à «defesa» de imitação do Mário, ela é na verdade descabida. Nem por sombras, durante um segundo, me passou pela cabeça semelhante ideia! Aliás como podia mesmo ela passar se os seus versos são tão característicos, são duma maneira tão sua, e compostos antes dos dele!... E depois, meu caro Pessoa, você não é dos que podem fazer coisas à «maneira dos outros». Os outros é que podem «fazê-las à sua maneira». Porque, acima de tudo, o meu amigo é uma «individualidade». E de resto parece-me que a alguns dos artistas da Renascença, mesmo dos de valor, falta essa primacial qualidade. Evidentemente não incluo nestes o Mário Beirão – que não considero em todo o caso uma grande individualidade – embora o considere um alto poeta, um soberbo artista.

A minha convivência com o Santa-Rita prossegue quotidianamente, interessante, sem dúvida, mas por vezes muito fatigante. Devo-lhe dizer que o Santa-Rita apenas tem admiração por um artista da nova geração: o Carlos Parreira. Mas esse é para ele um génio, valendo já a sua obra impressa por tudo quanto a gente nova – e mesmo a velha – tem escrito. Para o Santa-Rita esta frase dum escrito do Parreira vale uma literatura: «... com momices de gata e apelos sujantes de cadela». A frase é interessante, denota «alguém» mas daí a gritá-la a cada instante e a pô-la acima dos versos do Teixeira de Pascoais, do Mário Beirão e tantos outros, vai muito... Aliás o Santa-Rita não aprecia na prosa ideias, nem belezas – apenas quer música: «Escreva-me você, por exemplo, a descrição de um serrador serrando onde os rr se precipitem raspantes, e eu não terei dúvida em proclamá-lo um artista.» Mas só admite esta arte. Ora se na verdade eu admiro prosa e verso desta espécie (por exemplo, os «Violoncelos», em que se ouvem as cordas a gemerem, ou a sua «Flauta»), acho avançar muito querer reduzir a isto somente toda a literatura e amordaçar a ideia. Que diz a isto você? Outra grande admiração literária do nosso homem é, imagine quem, o Homem Cristo (pai)! Mas o Homem Cristo literato! Chama-lhe génio, cita entusiasmado frases dele e devora O Povo de Aveiro no Exílio, que aqui se publica hebdomadariamente!... Você compreende o que pode haver de fatigante na conversa com semelhante individualidade. No entanto, sempre em desacordo, largas horas palestramos. Mas se porventura se chega a qualquer ponto de discussão literária ele põe termo à conversa: «não querabastardar as suas opiniões» – diz. Ele a discutir a obra dum artista, só a poderia discutir profundamente, com veneração... Compreende bem a onda nervosa que me sobe pela espinha acima ouvindo tais petulâncias que dão a entender que o interlocutor não merece as honras duma dis- cussão literária. Mas eu sou delicado... delicadamente protesto. Mas que ventura se nestes momentos eu pudesse ser um Ponce de Leão!!... Santa-Rita diz conhecer toda a literatura, e ler Platão, Homero, Sófocles, Comte, Nietzsche, Darwin etc. e etc... Eu creio aliás muito pouco nos seus largos conhecimentos literários... não creio mesmo nada, meu amigo... Por isso talvez ele não discute... Dos artistas de hoje, a par do Parreira, apenas tem culto por um literato cubista Max Jacob que ninguém conhece e publicou dois livros em tiragens de cem exemplares. A primeira pessoa que não leu esses livros é ele... aliás cada volume custa 65 frs. Mas é genial!... porque é cubista... Picturalmente a sua grande admiração vai para o chefe da escola Picasso. Pasme: tendo eu tido na mão uma carta de Picasso, fui encontrar na letra do pintor espanhol profundas semelhanças com os arabescos santa-ritinos 1... A cada passo o Guilherme Pobre diz: «... porque você, Sá-Carneiro, bem vê, o artista hoje faz isto, aquilo, aqueloutro, tem tais ideias, etc., etc.» Das suas palavras depreende-se que só é artista quem assim procede – e só por proceder assim. De forma que ele, adoptando essas ideias, parece tê-las adoptado unicamente para ser como os artistas – para ser artista. Não sei se compreende esta embaraçada explicação. Em resumo: No artista o que menos lhe parece importar é [a] obra. O que acima de tudo lhe importa são os seus gestos, os seus fatos, as suas atitudes. Assim não usa relógio porque os artistas não usam relógio...

Falando das suas ânsias, refere-se sobretudo à sede que tem de dominar. Mas não artisticamente, socialmente. Tenciona quando a monarquia voltar para aí (muito breve, dentro de três meses, garante ele) surgir como conferente, director de museus etc. etc. E uma das suas primeiras medidas será fechar a Academia das Belas-Artes. Nas suas conferências fará sobretudo a apologia da Inquisição que ele acha da maior utilidade e urgência fazer reviver... Para dominar entregou-se – diz – aos jesuítas que o protegem e lhe dão 50 000 réis por mês... Um dos seus ídolos é o imperador da Alemanha; o seu sonho fazer de Paris a capital do Mundo sob o domínio do Kaiser... Para a exposição das Belas-Artes daí vai enviar, para escândalo, um quadro intitulado Portugal (que eu não vi nem está concluído) e que me descreveu assim: «Uma cabana de pescador. Um velho sentado. Uma janela aberta. No parapeito um vaso com um manjerico e um cravo de papel tendo uma bandeira de papel, azul e branca com a coroa real... Há uma cabeça de gato reduplicada e vê-se uma mulher olhar pela janela pensando no filho que partiu. Mas não se vê essa mulher nem os olhos dessa mulher. Mas sabe-se que ela olha...» No quadro aliás, diz ele, a única coisa que salta à vista e se compreende é a bandeira monárquica. Isto por conveniência própria além do escândalo: para agradar aos realistas a cuja sombra se acolheu e de quem espera o triunfo... Que me responde você a isto tudo? Não acha um caso curioso de «intoxicação ansiosa»; de pessoa que se perde na ânsia do triunfo? Ou isto tudo será razoável – será a verdadeira maneira de conseguir? Não o creio, porquanto me parece ter-se arrimado a árvores fracas, anémicas mesmo. Um grande «gajo» – desculpe o termo – ou um triste produto? A menos que isto tudo não seja fumisterie. Narro-lhe estas coisas, não por dar importância à personagem mas por as achar interessantes. Rogo-lhe que me dê a sua opinião na próxima carta que me escreva e que eu lhe peço me seja enviada brevemente. As suas cartas são para mim momentos de deliciosa palestra que eu aqui não posso ter senão por escrito. E creia que do fundo da alma lhe agradeço reconhecidíssimo o tempo que comigo gasta.

Abraça-o num grande abraço de sincera amizade o seu muito amigo e obrigado

Sá-Carneiro

 

De ideias novas?

Escrita entre fumo e barulho de bons burgueses jogando o dominó ou o écarté, a presente vai desarticulada e infame. Mas o meu amigo perdoará.

Peço-lhe não divulgue a história do quadro Santa-Rita adiante narrada, nem fale ao irmão sobre tudo que acerca do Guilherme conto.

 

1 O Santa-Rita decerto largas horas estuda a caligrafia do seu mestre para até nisso se lhe assemelhar.

 

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5251
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre 2 folhas pautadas e timbradas (Taverne Pousset, Paris) e sobrescrito.
Dados de produção
1912 Dez 10
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris

Mário Beirão
Carlos Parreira
Teixeira de Pascoais
Homem Cristo
Santa-Rita
Platão
Homero
Sófocles
Comte
Nietzsche
Darwin
Max Jacob
Picasso
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115/4
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.