Virtual Archive of the Orpheu Generation

Mário de Sá-Carneiro

The Virtual Archive of Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), modernist poet, includes his correspondence, notebooks, manuscripts and published work during his lifetime. Most of these documents were gathered by François Castex, French intellectual, and are kept at the National Library of Portugal. Also included here are letters sent by the author to his great friend Fernando Pessoa.

The full documents can be found in the 'PDF' box and the manuscripts have been transcribed in the 'Edition' box. 

 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/4_6
Esp.115/4_6
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris, a 28 de Outubro de 1912.

 

Paris 28 out. 1912

 

Querido amigo,

Tenho andado muito com o Guilherme de Santa-Rita.
É um tipo fantástico, não deixando no entanto de ser interessante. Imagine você que a uma mesa do Bullier, em frente duma laranjada e

tendo por horizonte o turbilhão dos pares dançando uma valsa austríaca – de súbito, a propósito já não sei de quê, me desfechou esta:

– ... porque eu, sabe você, meu caro Sá-Carneiro, não sou filho da minha mãe...

Julguei estar sonhando, mas ele continuou:

– O meu pai, querendo dar-me uma educação máscula e rude, mandou-me para fora de casa quando era muito pequeno. Fui para uma ama cujo marido era oleiro. Essa ama tinha um filho. Uma das crianças morreu. Ele disse que fora o seu filho. Entretanto, a instância de minha mãe e devido a eu ter ido com uma companhia de saltimbancos, tendo sido encontrado em Badajoz (eis os saltimbancos do Jaime Cortesão, coisa que aliás ele me confessara ser blague) voltei para casa dos meus pais. Em 1906 porém a minha ama morreu e deixou uma carta para minha mãe em que lhe confessava que quem morreu fora o filho dela. Logo eu não era o filho da minha mãe mas sim da minha ama. É este o lamentável segredo, a tragédia da minha vida. Sou um intruso. Ah! mas hei-de dar uma satisfação à sociedade! É por isso que eu quero ser alguma coisa nesta vida! E abençoo a minha verdadeira mãe que, para eu ser mais feliz, não teve hesitação em perder-me, em dar-me a outra mãe! Eu quando escrevo ao Augusto assino sempre, humildemente Guilherme Pobre. E foi por isto que, quando estive em Lisboa, não quis ir para minha casa, fiquei num hotel. (Diga-me você, Pessoa, se isto é verdade.)

Depois desta longa tirada que me deixou boquiaberto, eu sorri e comentei «que era muito interessante... um verdadeiro romance folhetim...». Saímos. E cá fora, ainda falando no caso, ele ria nervosamente, sinistramente, encostando-se a mim...

Que diz você a isto, Fernando? Peço-lhe que faça comentários e que, em todo o caso, não divulgue a história, pois ele me pediu o máximo segredo... É espantoso! E de mais nessa mesma noite ele jurara-me que se deixara por completo de blagues.

Outra coisa interessante são as suas opiniões literárias e as suas ideias políticas: Em literatura, quer em prosa quer em verso, não admite a sombra duma ideia. Declarou-me quando eu lhe contei o «Homem dos Sonhos»: Que era interessante, sem dúvida, mas que só pelo facto de se poder contar perdia para ele todo o mérito. Enfim: só admite coisas que se não possam narrar, e citou-me o «Outono» do Carlos Parreira.

Quanto a política é ultramonárquico, intitula-se mesmo imperialista e afirma que o artista tem a necessidade de se acolher sempre a um homem superior – a um rei, porque para ele todos os reis lhe são superiores. Em frente do próprio D. Manuel, conforme declarou, ele se considera inferior. Eu respondi-lhe: Meu caro, pois eu se me considerasse inferior ao D. Manuel dava um tiro na cabeça.

Que diz você a isto? Também se considera inferior a todos os reis e acha que o artista necessita – segundo a expressão do Santa-Rita – de ter um senhor? Fale sobre isto.

O Ramos? que é feito do Ramos? Sempre foi para o Brasil? Fale-me da gente conhecida; suplico-lhe que me escreva longamente na volta do correio, dando novidades literárias, falando de si etc. Um grande abraço do seu muito amigo

Sá-Carneiro Escreva para Grand Hotel du Globe – 50, rue des Écoles.

 

Meu caro

Acabo de ler a carta junta e vejo que está horrível; mal escrita, emaranhada. É talvez o ruído do boulevard que me entra pela janela aberta do hotel que me descarrilou a gramática. Perdoe-me, mas não lhe escrevo outra.

Ainda a respeito do Santa-Rita: ele explica a sua habilidade e a sua tendência para a pintura por o seu pai ser oleiro...

Actualmente, disse-me, trabalha num quadro que representa «o silêncio num quarto sem móveis»...

Há pouco tempo pintou também – coisa que considera uma das suas melhores obras – um pequeno quadro que representa um W. C.

Não posso julgar das obras porque não as vi. Ele mesmo afirma que as coisas que pinta só umas dez pessoas, em todo o mundo, as podem não só compreender como ver...

Escreva!!
Não se esqueça de me dizer se tem visto o Ramos.

E o folheto? E a Águia?
Grand Hotel du Globe – 50, rue des Écoles

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5119
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre 2 folhas lisas.
Dados de produção
1912 Out 28
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Santa-Rita Pintor
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115/4
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.