Identificação
Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris.
17
Paris 21 de janeiro de 1913
às 10 horas da noite
Meu querido amigo,
Esta tarde escrevi-lhe uma carta e agora, à noite, venho-lhe escrever outra... É que num lapso de cinco horas nasceram coisas que não posso resistir a confiar-lhe – a maçá-lo e a pedir-lhe a sua opinião sobre elas. Trata-se de projectos literários. Mas se abriu esta carta primeiro, peço-lhe que leia a outra antes.
E perdoe-me...
Começo (a carta vai sair longa; você perdoará?).
Andava ultimamente muito desolado por ver o tempo ir passando e
as forças me faltarem para escrever o livro que quero publicar cada ano – isto é, para escrever o meu volume de 1913. Não que – santa modéstia! – as ideias me faltassem ou o cérebro me andasse vazio. Pelo contrário. Tensões novas até me tumultuavam nele, material mais vago e intenso – superior portanto. Mas para o que eu me sentia castrado neste período que ameaçava prolongar-se era para o trabalho material de grandes composições – novelas extensas, quero dizer, como as que eu tinha tenção de manufacturar para o Perturbadoramente: A Confissão de Lúcio e Gentil Amor. Ora hoje revelou-se-me uma maneira de «arranjar as coisas» – perdoe o lugar-comum. É a organização de um pequeno livro que me parece deveras interessante e original reunindo a essas qualidades a de pequena extensão material. É um livro muito mais a fazer com o pensamento do que com a mão. É livro que levará meses a ser trabalhado na rua e semanas a ser escrito. Justamente o «ideal» para o período que atravesso. Com efeito eu vou vivendo com uma «tensão» muito elevada que não me permite fixidez. Mas «fixidez» para escrever esse volume arranjá-la-ei facilmente porque em números positivos é coisa para, no total, não exceder 30 dias de trabalho de banca.
Agora oiça o plano do livro e a sua descrição. E desde já lhe digo que lhe peço toda a sua atenção espiritual, toda a sua compreensão, toda a sua sinceridade para me dizer o que pensa acerca do que lhe vou expor e para me dar os conselhos que lhe vou pedir.
O volume será publicado sobre a forma – talvez – duma plaquette – o mais elegante possível, é claro. Compor-se-á de 7 pedaços de prosa cada um pouco mais ou menos das dimensões do «Homem dos Sonhos». Isto é: narrativa de 10 minutos a 1/4 de hora. Frontispício:
Além
– Sonhos –2
Composição:
«O Homem do Ar» (3), «O Homem dos Sonhos», «A Orgia das Sedas», «O Fixador de Instantes», «Asas» (2), «Mistério», «Além».
Cada uma destas narrativas cabe no Além como vai ver. «O Homem dos Sonhos», que conhece, é evidentemante uma história de além-vida, de além-terra; desenvolve-se noutros mundos, noutros senti- mentos. «O Fixador de Instantes» é um amoroso do «além» – quer prolongar os momentos bons que fixa além do instante em que os viveu, é a história do além-tempo. A sua ideia é, por outro lado, além-humana, visto que a gente normal a não pode compreender. Quanto às outras narrativas, é preciso falar-lhe mais detalhadamente visto que as desconhece ou mal conhece. («Além», mesmo, abrange o livro todo, porque as histórias que ele encerra são todas vagas, sonhadas, além-realidade.)
«A Orgia das Sedas» – Trata-se dum esteta que descobriu a maneira de ampliar a voluptuosidade e mesmo o simples prazer da emoção artística que até aqui apenas era recebida pelos ouvidos (música) e olhos; bem como a voluptuosidade só era sorvida pelo paladar (comidas), pelos órgãos sexuais e muito imperfeita e distraidamente pelo olfacto (perfumes). Ora, enquanto o ouvido, o olhar, o paladar e o olfacto apenas existem cada um localizado no seu órgão, um sentido há que, concentrado nas mãos, vive entretanto em todo o nosso corpo – o tacto. Tirar todo o partido deste sentido eis o segredo principal do grande esteta. E assim se descreve a espantosa «Orgia das Sedas». Um palácio carregado de perfumes e
músicas, e sumptuosidades e mulheres nuas para os olhos. Mas tudo isto apenas acessórios. O importante: as sedas que passam sobre os corpos, sedas e veludos fantásticos de cores e desenhos e contextura que tocam ao roçar na pele como o arco dos violinistas toca ao passar nas cordas do instrumento. As sedas rolam sobre a pele e há sensações estranhas e deliciosas, voluptuosidades ignoradas e fulvas, espasmos supremos – delícias irreais cujo cenário são os perfumes e as músicas e as mulheres. O segredo consiste na maneira de fazer passar as sedas sobre os corpos nus e na de lhe dar a sua contextura. A ideia deste conto é descrever as regiões inexploradas da voluptuosidade – o além-voluptuosidade. Há nele uma ampliação, como ampliação do universo há no «Homem dos Sonhos» e de momento no «Fixador de Instantes». Que pensa desta ideia da qual julgo ainda não lhe ter falado?
«Asas» – É a história do artista que busca a perfeição e a ultrapassa sem a conseguir atingir (além-perfeição). Eu dava a este conto – cuja ideia lhe expus outro dia – o título de «Asas» querendo simbolizar a perfeição que se não pode atingir porque ao atingi-la evola-se, bate asas. Receio porém que o título seja vago demais. Conviria melhor unicamente «A Perfeição»? Peço-lhe que me responda.
«O Homem do Ar» – É a narrativa da tragédia do ar, em que lhe falei. Mas este título agrada-me mediocremente. Também se poderia chamar: «O Amoroso do Ar», «Tragédia Azul», «A Tragédia do Ar». Dê a sua opinião. Devo-lhe dizer que esta ideia é uma das que mais estimo e que atingiu no meu cérebro já a sua completa maturação. O homem do ar morrerá vítima dele: morrerá de amor e de piedade pela atmosfera, e ascenderá no azul.
«Mistério» – É a ideia que lhe expus na minha carta anterior assim encenada: Dois noivos que vieram passar a lua-de-mel numa casa de campo são encontrados mortos inexplicavelmente, sem feridas nem sinais de violências. Um doido, antigo poeta, que vive em face da habitação deles, clama que viu de noite uma janela abrir-se e uma forma toda luminosa saltar, ascendendo na atmosfera num halo de luz doira- da. O narrador, em face do que conhecia dos ideais dos seus amigos, sugere (não explica, apenas sugere vagamente) que a morte seria devida à compreensão daquelas duas almas que se materializaram num ser doutra região – ou mesmo só numa alma imaterial. Esta ideia ainda pouco madura, seduz-me bastante, vendo nela um grande alcance. Fale sobre ela, diga o que pensa.
«Além» – É o fecho do livro. A empresa mais difícil, mais audaciosa em que até hoje tenho pensado. Não é uma ideia que se possa expor.
A narrativa resume-se no seguinte: dar por frases a ideia do «Além» – o Além, o vago, os desequilíbrios do espírito, os voos da imaginação. Isso dar-se-á por meio de mistura de coisas raciocinadas, coerentes, com súbitos mergulhos no azul, tempestades de palavras que se emaranhem e arranhem, se entredevorem e precipitem. Quando sonhamos, escapam-nos pormenores; os acontecimentos que se desenrolam nos sonhos por vezes não têm ligação, sucedem-se invertidos, não estão certos em suma. Faça um esforço para me compreender: Surgem-nos como uma soma de parcelas de espécie diferente. Pois o que é preciso é que esta narrativa dê ao leitor a mesma sensação. Ela desenrolar-se-á como a descrição duma viagem. Mas toda infixada, irreal. Diga-me se compreende bem isto. E creia que sei medir a dificuldade da empresa. Mas estou decidido a tentá-la. Esta narrativa fechará o livro. O próprio «Além» terminando as variações do além.
Eu julgo uma ideia feliz esta do subtítulo: Sonhos, em vez de contos, narrativas, prosas, banais e com pouco cabimento neste livro. Diga o que pensa. Não se esqueça. E tenho um favor muito grande a pedir-lhe. Há uma epígrafe que é a sonhada para este livro e que eu teria uma grande pena de não imprimir no frontispício. Ora essa epígrafe é um verso inédito seu: «O que sonhei, morri-o.» Você vê optimamente como ela se casa com o volume e decerto me permitirá imprimi-la, pondo por baixo (se ainda estiver inédita) esta legenda: «duma canção inédita de Fernando Pessoa». Rogo-lhe que me dê resposta a tudo quanto lhe pergunto e peço, resposta larga e breve. Assim auxiliar-me-á poderosamente na minha tarefa; incutir-me-á entusiasmo e força. Este pequeno livro escrevê-lo-ei até julho, levando-o pronto para Lisboa aonde o burilarei entretanto publicando-o em outubro próximo unicamente. Bem vê que em face de mim tenho tempo de sobra pois é um trabalho material- mente pequeníssimo. E é preciso contar que o «Homem dos Sonhos» está por assim dizer já escrito.
Ainda um conselho: eu penso pôr esta dedicatória no livro: «À gente lúcida» (mas por «ironia» porque a «gente lúcida» condenará as minhas narrativas). Receio entretanto que se lhe possa dar outra interpretação: à gente lúcida, inteligente, porque só ela pode compreender este livro. Responda a isto. A dedicatória: «À gente tranquila – estas páginas de alucinação e de ânsia», iria melhor? Ou nem uma nem outra prestam para o efeito. É outra coisa a que tem que responder.
Suplico-lhe que me perdoe a maçada que lhe «prego» e que me dê sobretudo a sua opinião. Ela é o melhor incentivo para o meu trabalho, o melhor guia. E quase lhe poderei chamar o meu colaborador.
Responda breve!!...
O seu muito amigo e obrigado
Sá-Carneiro
P. S.– Uma das narrativas há-de levar o seu nome à frente. Prefere o «Homem dos Sonhos», como estava assente, ou agrada-lhe mais que eu lhe dedique uma das outras? À sua escolha... Não se esqueça de responder também a isto.
Responda breve!
2 Os números correspondem a conselhos que adiante lhe pedirei.
Classificação
Dados Físicos
Dados de produção
Corrigido o erro do ano.