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Fundo
Fernando Pessoa
Cota
BNP/E3, 14-6 – 3-17
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Frederico Reis – Folheto
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Autor
Frederico Reis

Identificação

Titulo
Frederico Reis – Folheto
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 146 – 3-17]

 

Frederico ReisFolheto

 

O nome de escola, o nome (aparentemente de escola) de “sensacionismo”, o termo de igual sugestão “neo-classicismo” – tudo isto falseia, desvirtua e, mesmo, humilha a corrente de que ora tratamos.

Uma escola literária – no mais lato dos sentidos – é um movimento em que os autores, à parte diferenças individuais, que são tanto maiores quanto maiores eles são, têm um fundo comum de inspiração, um modo comum de inspiração.

Assim, a chamada escola de Coimbra tem, em todos os seus membros, o fundo comum de cosmopolitismo, de racionalismo

 

[3v]

 

e de tendência filosófica. Antero, Guilherme Braga, Guerra Junqueiro, Gomes Leal – todos eles pertencem realmente a essa “escola” e têm, sendo grandes as divergências individuais, esse fundo comum.

Ora não há fundo comum nos três poetas Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, para não falar no precursor deles, Cesário Verde.

Não há um movimento, há três; cada poeta representa um. Há os antagonismos, como os de Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Caeiro é um puro naturalista, a seu modo, extraordinariamente original. Ricardo Reis é um grande, o único, neo-clássico. Álvaro de Campos é o que os futuristas

 

[4r]

 

quiseram ser, e mais alguma coisa, o poeta de Sensações e só de sensações, e do pensamento e do sentimento como sensações apenas.

Mas não há dúvida que Alberto Caeiro despertou tanto em Ricardo Reis como em Álvaro de Campos a poesia que eles continham em si. Alberto Caeiro não é um chefe de escola, pois, visto que os seus “discípulos” o não seguem. Caeiro é um fecundador de almas, um libertador de inspirações, um individualizador. É outra coisa, muito maior, muito mais alta e nobre, e

 

[4v]

 

muito mais alto coloca o Mestre jovem e glorioso.

O efeito da obra de Caeiro sobre Ricardo Reis e Álvaro de Campos foi o de uma paisagem totalmente nova que contemplassem, que lhes despertasse as almas, mas a cada um a sua, a cada um segundo as suas tendências e faculdades.

Não quer isto dizer que fosse só esta a influência de Alberto Caeiro. Na obra dos dois influenciados há-de haver traços da “paisagem” que os despertou. E com efeito a miúdo aparecem, nas obras

 

[5r]

 

(tão diversas!) de Ricardo Reis e Álvaro de Campos, trechos, frases, modos de ver e de dizer que são ecos alterados da voz límpida do Mestre.

Por isto tudo, e na ausência de um nome que a todos englobe, mas sob a necessidade e conveniência de tratar de arranjar um tal nome, decido chamar a esse movimento a “escola de Lisboa” (como à outra se chamará de Coimbra) ditas as razões que exponho a seguir.

 

[5v]

 

De comum a todos os poetas aqui estudados é o serem de Lisboa, nados e criados. Depois, Lisboa é a única cidade portuguesa a que se pode chamar “grande” sem ser forçoso que se ria do epíteto[1]. É o único centro português onde entrou um grau superior de cosmopolitismo. É o único lugar de Portugal onde alguma coisa da febre de processos modernos apareceu. Ora precisamente o que caracteriza tanto Caeiro, como Ricardo Reis, como Álvaro de Campos, creio, de

 

[6r]

 

o outro grupo e tão diferente! – de literatos que estudarei é que a sua atitude é tomada como que para a Europa toda e não para Portugal. Têm uma bagagem de vistas e de atitudes que é a de quem sabe que está criando arte, não para um país, mas para uma época e para uma civilização. É difícil explicar como se conclui isto a quem ignore as obras que estudaremos. Quem as leu percebe-me logo e concorda

 

[6v]

 

comigo. Isto é argumento e, portanto, impossível de provar, ao mesmo tempo que é desnecessário prová-lo.

Todos os membros da Escola de Lisboa dão a impressão de que falam em voz alta, para que toda a Europa oiça. Um movimento como a Renascença Portuguesa, por exemplo, é todo em surdina, em segredo. Não há só regionalismo, há, como no passo diria Fernando Pessoa, consciência de regionalismo.

Depois – e eis aqui o

 

[7r]

 

principal, os saudosistas perderam o contacto com a poesia do século, lá de fora. Ninguém diria que houve simbolismo e que há futurismo |etc.| lá fora ao ler qualquer dos saudosistas.

A evolução saudosista – quer dizer, a evolução até ao saudosismo – foi feita dentro de portas, intra muros, com matéria apenas lusitana. O fundador da corrente, António Nobre, tinha vagos ele-

 

[7v]

 

mentos, puramente acessórios, de simbolismo. Esses desaparecem no seguinte. Só os leitores de Anto se apegaram. Esse desenvolveu algumas e aprofundou até dar o saudosismo. Não se entenda nestas palavras uma crítica fundamente adversa, nem um desconhecimento quer do valor, real e profundo, dos saudosistas, nem da sua utilidade social como influências patrióticas. Mas repare-se que timbramos

 

[8r]

 

apenas em apontar que eles são, na sua inspiração, assim como na sua orientação de conjunto, estreitos, regionalistas e – vá lá a verdade – estagnados.

Não compreenderam eles que há um nacionalismo mais largo e verdadeiro que é o que marca o seu lugar na civilização contemporânea estando sob ele e não afastando-se. Os saudosistas viraram costas aos movimentos do século. Não

 

[8v]

 

se integram neles. Estão à parte. Por mais que se queira favorecê-los na crítica, ocioso é negar que isto implica uma inferioridade, fatalmente.

Como o leitor decerto sabe, lá fora chocam-se (na vida, nem sempre se chocam – às vezes existem em harmonia lado a lado) duas tendências – a tendência egotista, que começou nos simbolistas, e a tendência vitalista (chamemos-lhe assim) que, opondo-se

 

[9r]

 

a esta, procura desviar o seu interesse dos detalhes mínimos (a que aquela se aplica |*inevitavelmente|) da vida do espírito, para cantar, ou a Natureza ampla, livre e fecunda, ou o progresso ruidoso, implacável, na aparência pouco poético, o espaço, a luta do homem contra a natureza, o trabalho, as civilizações. Desta segunda tendência – a dominante agora – temos os exemplos das novas obras de fora – de uma

 

[10r]

 

na poesia da Condessa de Noailles, da outra na tendência, mais do que na realização, dos futuristas e de outros grupos análogos.

Ora os saudosistas não pertencem a nenhum grupo destes. São poetas da Natureza, é certo, mas à romântica, da Natureza espiritualizada, transcendentalizada, vista através do espírito humano e atribuindo às coisas qualidades do espírito humano. Esta corrente – como magistralmente provou Fernando Pessoa,

 

[11r]

 

que com ela esteve ninguém sabe como nem porquê – é um prolongamento directo e lógico do romantismo. Tem valor por isso; é realmente original, porque com efeito não fica no romantismo como estava, prolonga-o realmente, continua-o, leva-o até ao seu máximo. Mas, por verdade que tudo isto seja, resta apontar que, por isso, chegou tarde. Prolongar o romantismo depois do romantismo estar morto à 1/2 século não terá o seu

 

[11v]

 

quê de absurdo? Antero estava bem, porque prolongou o romantismo na época consciente e precisa. Por isso é Antero um poeta completo; é dos tais que fala alto, para a Europa toda, para a civilização em geral. O saudosismo, partindo talvez de Antero, no fundo, devia ter aparecido logo para poder aparecer no seu tempo e na mesma altura com referência à civilização contemporânea.

 

[12r]

 

É estreito porque chegou tarde; o seu isolamento é fatal, tinha que se dar. Como não se devia ele isolar, se nada o liga ao presente da Europa civilizada?

De tudo isto, não resulta que Pascoaes e Correia de Oliveira não sejam grandes poetas (certas reservas feitas, sobretudo para quem ler o estudo escassamente lisonjeiro de Fernando Pessoa); mas maiores seriam se timbrassem em pertencer ao seu tempo, se não se pusessem num passado, verdade

 

[12v]

 

seja que não muito afastado, mas um passado em todo o caso.

Ora precisamente o que a escola de Lisboa tem – e que dá razão ao nosso grande, ao nosso legítimo e sagrado orgulho – é essa qualidade essencial que os saudosistas não possuem. Vimos que há dois grandes movimentos contemporâneos na literatura – ou pelo menos na poesia – europeia actual. Dissemos que um buscava a

 

[13r]

 

Natureza como um {…} que os românticos não tiveram, que se podia dizer que eles desvirtuam, se eles não houvessem vivido antes de haver esse novo sentimento; e que o outro procura analisar a vida do espírito, cingir de perto os seus mais fragmentários estados, analisar as suas mais vagas e transitórias Sensações. Pois bem! O que todos esses poetas

 

[13v]

 

de lá de fora tem querido e querem fazer quanto à natureza, fê-lo, de uma vez para sempre, com uma originalidade, uma unidade e uma sublimidade para que não [há] adjectivos ainda, o assombroso Alberto Caeiro, nome sagrado esse, o do maior poeta da língua portuguesa, o do mais alto criador que, na literatura, Portugal deu ao mundo!

E, quanto ao movimento, que no seu início deu o

 

[14r]

 

simbolismo – ei-lo perfeito, completo, dado de vez como ainda lá fora ninguém o dera, nas suas formas, por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Fernando Pessoa representa a superação final, a culminância da auto-análise, a “consciência das coisas” como dizia Amiel levada ao extremo, ao último e sublime grau. Verhaeren e Gustave Khan são a infância de Fernando Pessoa. Semelhantemente o que lá fora ninguém proficientemente fazia, com mera intuição ou doutro modo, a

 

[14v]

 

materialização as sensações, a carnalização do espírito, ei-lo feito com grandeza máxima, com proficiência inigualável pelo génio doido de Mário de Sá-Carneiro.

Mas desçamos a detalhes, vamos mais longe. Veremos que para cada esboço de lá fora, para cada preocupação contemporânea que lá fora não consegue exprimir-se, temos (por qualquer razão, não sei) um poeta que a realiza. Outra atitude contemporânea é a busca da composição clássica.

 

[15r]

 

Ninguém lá fora a dera, e apertadamente a buscara. Mas deu-a, de vez, a uma altura inconcebível, de um modo certo e justo como mal se pode esperar, a alma gigantesca e pagã de Ricardo Reis. E os futuristas, que não haviam conseguido deveras e a valer meter nos seus versos, de modo eterno e moderno, abstracto, a vida actual, cosmopolita, científica, ruidosa e produtiva, vêem o seu ideal

 

[15v]

 

realizado, realizado completamente, inultrapassavelmente pelo génio febril, nervoso de Álvaro de Campos, que na sua enorme Ode II triunfa de uma vez para sempre de todos os vários futuristas por acabar, que na França, na Itália e na Inglaterra não conseguem dizer o que querem.

Quem, com dois dedos de inteligência e poder de ver como pela 1ª vez adentro de argumentos, ousaria contestar o que dizemos?

 

[16r]

 

O nosso desprezo, desde já, para a inteligência, ou sectária ou estreita[2], de quem o ousasse contestar.

Nunca a alma portuguesa valeu tanto! Até os saudosistas que, como demonstrei, estão fora da época, ultrapassam uma corrente de lá fora; essa corrente é uma corrente estreita, mas eles elevaram-na, transcenderam-na – isso é constatável. Estendamos impulso nacional que até ao seu ponto

 

[16v]

 

mais baixo passa além do que a Europa fez, cria, é novo, original, grande, realmente grande!

A propósito: se quiserem mais um argumento contra a oportunidade e o valor moderno do saudosismo, vejam: ao passo que o valor individual das figuras da Escola de Lisboa é maior que o dos seus precursores nas várias correntes a que pertencem, o do saudosismo, é inferior, pois ninguém quererá dar Pascoaes,

 

[17r]

 

Jaime Cortesão, Mário Beirão, António Correia de Oliveira por maiores do que Goethe, Shelley ou mesmo Hugo.

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II

(os precursores)

 

 

[1] epíteto /adjectivo\

[2] estreita /nula\

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5194

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Português

Dados de conservação

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Biblioteca Nacional de Portugal
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Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Fernando Pessoa, Sensacionismo e Outros Ismos, edição de Jerónimo Pizarro, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, pp. 57-61.
Exposições
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