Imprimir

Medium

Fundo
Fernando Pessoa
Cota
BNP/E3, 14-4 – 83-84
Imagem
[Sobre Goethe]
PDF
Autor
Fernando Pessoa

Identificação

Titulo
[Sobre Goethe]
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 144 – 83-84]

 

Que venha escrever sobre Goethe alguém que, como eu, não conhece o alemão, não tendo portanto lido esse autor no original, pode parecer, e em certo modo é, aquela espécie de ousadia a que mais distintivamente cabe o nome de atrevimento. Como, porém, sábios e ilustres teólogos, que a opinião culta consagra e a Igreja por vezes canoniza, falaram largamente sobre Deus com ainda menor conhecimento, e lição do original, o meu atrevimento, a praticar-se, terá largo acompanhamento histórico, honrosos precedentes intelectuais, e, com isso, suficiente justificação.

 

Acresce que, como tudo mais neste mundo imaginário, cada homem, e portanto cada autor, é um símbolo, e o conteúdo ou sentido dos símbolos antes se obtém por aquela inteligência intuitiva, que os cabalistas denominam angélica, que pela inteligência discursiva que, no conceito deles, é própria do deus |morto e levantado|[1] a que chamamos homem. E como todos nós, embora não sejamos anjos, em certo[2] grau possuímos essa inteligência angélica, como, em algum grau também, as que são superiores a ela, é-nos lícito adivinhar o que não sabemos, desde que o adivinhado enquadra, depois, no entendimento próprio da inteligência discursiva, que como homens nos distingue, e, ao contrário da outra, tem resultados transmissíveis.

 

Não quer isto dizer que vá usar de qualidades vedadas aos chamados mortais, e que houvesse obtido por aquele processo sacrificial chamado iniciação. Não é de qualidade tão alta a intuição necessária para o entendimento e exposição do caso presente. Nem quer isto dizer, felizmente para o leitor, que vá aplicar ao entendimento de Goethe a Cabala hebraica ou cristã, tentar interpretar a vida e a obra dele pela aplicação das dez chaves sefiróticas ou das cinco pétalas, ou pontos perfeitos, da Rosa Crucificada. Quer dizer, tão-somente[3] aquilo que primeiro direi melhor por citação, explicando-a, que por explicação própria e directa.

Um homem pode ser um símbolo pois com isto ele é um ritual, e só os rituais que se abrem com dez ou cinco chaves.

 

Diz assim um Mestre de Magia, narrando como se passaram nele, sendo escolar de letras em Cambridge, os fenómenos da Antecâmara da iniciação:

"........................................................................."

É esta atmosfera, que nada tem com a língua alemã ou o conhecimento dela, que procurarei compreender na compreensão, ou antes para a compreensão, da vida e da obra de Goethe.

 

A palavra intuição comporta três sentidos: Um é aquele em que acima se falou - conhecimento por processos supra-racionais, fora da fiscalização da inteligência e por isso incomunicáveis a outrem nos seus verdadeiros resultados. Esse processo, aplicável, se há em nós o com que aplicá-lo, ao entendimento de coisas em si mesmas supra-racionais, não teria cabimento no estudo e análise de uma vida e obra humanas.

 

[84r]

 

Outro é o do raciocínio rápido, relativamente fácil a quem está habituado a raciocinar, em que o que parece uma intuição, ou, como vulgarmente se diz, um palpite, não é mais, em verdade, do que a observação rápida de um certo número de factos e uma indução igualmente rápida tirada deles. Este processo, não o poderei aplicar também ao caso de que tracto, pois um dos factos primaciais de que haveria de tomar nota está na obra de Goethe, e exige aquele conhecimento da língua alemã, que comecei por dizer que não tenho.

 

Há, porém, um terceiro processo intuitivo, que consiste em extrair de factos dispersos, insuficientes em si mesmos para deles se tirar uma conclusão racional, uma conclusão a valer.

 

No primeiro processo usamos, de facto, de qualidades supra-racionais. No segundo usamos de qualidades racionais aplicadas intuitivamente. No terceiro usamos de uma mistura de inteligência e de sensibilidade que produz resultados que, isolada, nem a sensibilidade nem a inteligência produziria. Usamos, em suma, da imaginação.

 

Através do que sei de Goethe, e do que, translatamente, li de Goethe, devo imaginar Goethe. Suspeito que em grande número de casos críticos, ainda com conhecimento da língua original, não tenha sido outro o processo.

_______

 

[1] |morto /(deitado)\ e levantado|/ translato\

[2] certo /um ou outro\

[3] tão-somente /(simplesmente)\

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/4637

Classificação

Categoria
Literatura
Subcategoria

Dados Físicos

Descrição Material
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
Notas à data
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Proprietário
Historial

Palavras chave

Locais
Palavras chave
Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Pauly Ellen Bothe, Apreciações literárias de Fernando Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013, pp. 126-128.
Exposições
Itens relacionados
Bloco de notas